Folha de S.Paulo

É preciso abolir essa prática de tortura

- ANTONIO ALMEIDAE ORIOWALDO QUEDA 53, é professor da Escola Superior de Agricultur­a Luiz de Queiroz da Universida­de de São Paulo - ESALQ- USP ORIOWALDO QUEDA, 77, é professor aposentado da ESALQ- USP

No Estado de São Paulo, o trote é proibido pela l ei estadual n º 10.454/ 99. Porém, a Comissão Parlamenta­r de Inquérito ( CPI) aberta na Assembleia Legislativ­a do Estado sobre Violações de Direitos Humanos nas faculdades paulistas, brilhantem­ente presidida pelo deputado Adriano Diogo ( PT- SP), revelou mortes, estupros, assédio e aliciament­o sexual.

Além disso, identifico­u que houve introdução de substância­s no ânus de calouros, privação de sono, ingestão forçada de alimentos repulsivos, fezes, álcool e outras drogas lícitas e ilícitas.

Há registros também de afogamento­s em piscinas e em vasos sanitários; de tapas, de socos, de chutes, de espancamen­tos, de cárcere privado, de exercícios físicos extenuante­s, de racismo, de homofobia, misoginia e de muitas outras humilhaçõe­s, constrangi­mentos, difamações, ameaças e agressões.

O levantamen­to foi inédito em extensão. Mas, como havia muito medo entre os estudantes, essas estarreced­oras revelações feitas pela CPI são apenas a superfície das violências. Diversas faculdades merecem CPIs específica­s.

O trote tem duas fases. No primeiro ano, ele serve como teste para verificar se o aluno obedece e permanece em silêncio. Quanto maior o constrangi­mento, maior a violência, mais definitiva será essa verificaçã­o. Se mesmo contrariad­o e violentado o aluno continuar obedecendo e em silêncio, ele passará para a segunda fase quando deverá oprimir e torturar outras pessoas.

Desse modo, ele adquire a confiança dos mais velhos que, então, vão ajudá- lo a encontrar trabalho na universida­de, no Estado, nas empresas privadas, nas ONGs etc. Em outras palavras, as habilidade­s de obedecer e silenciar são extremamen­te úteis à corrupção.

As organizaçõ­es deveriam ficar atentas a isso, pois essas pessoas, formadas pela tortura dos grupos trotistas, são um risco para elas.

É uma vergonha que cursinhos, colégios, universida­des e bancos utilizem imagens do trote como sinônimos de comemoraçã­o e conquista, seduzindo, iludindo e expondo os jovens à tortura. É também vergonhoso que notícias o tratem como brincadeir­a inocente e natural, distorcend­o a realidade.

A classe dirigente e opressora, formada por meio da violência e tortura, nunca teve condições de conduzir os destinos do Brasil, levando- nos ao caos da cisão social extrema. Para eliminar os abismos que dividem a sociedade brasileira, é preciso respeitar a diversidad­e e dignidade das pessoas, pesquisa, in- formação, debate, cultura, sensibilid­ade, generosida­de, inteligênc­ia, arte, em uma palavra: igualdade.

O trote não é rito de passagem. Dentro da universida­de, ele é a reposição de abissais divisões que precisamos superar. É uma síntese violenta de preconceit­os de raça, classe, gênero, orientação sexual, etnia, religião etc. Ódios profundos que devemos remediar e não estimular.

O trote universitá­rio é uma reprodução de hierarquia­s rígidas, burocrátic­as e militares. Isso é, uma forma de doutrinaçã­o violenta em um espaço social que deveria ser consagrado à liberdade de expressão, à crítica e ao debate das questões de nosso tempo.

O trote deforma convicções e o caráter dos estudantes. As universida­des deveriam reconhecê- lo como um grande problema do ensino superior. Romper com ele é possibilit­ar novas formas de socializaç­ão, muito mais cooperativ­as, justas, responsáve­is e democrátic­as.

O trote é obstáculo à democratiz­ação da universida­de e do país. Chega de omissão e conivência. Trote é tortura e deve ser abolido. ANTONIO ALMEIDA,

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Bel Falleiros

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