Folha de S.Paulo

Transição para a maturidade

- VÍCTOR GABRIEL RODRÍGUEZ, 39, é professor de direito penal da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, membro da União Brasileira de Escritores e autor do livro “O Caso do Matematico Homicida” ( ed. Almedina) VÍCTOR GABRIEL RODRÍGUEZ

A prática de trote aos ingressant­es nas universida­des do país causa inevitavel­mente episódios de violência nesses tempos de inauguraçã­o de ano letivo.

Ainda que sejam eventos indesejáve­is, a proibição ou o estrito controle desse costume universitá­rio passa longe de significar um bem coletivo. Bem ao contrário, uma coibição excessiva somente serve para insuflar o lento processo de infantiliz­ação e paternalis­mo que submete a nossos estudantes. Processo que já vitimiza toda a sociedade.

Dizer que o trote aproxima- se de um ritual de passagem ao jovem calouro é algo tão cristaliza­do como verdadeiro, ao menos se resgatamos seu sentido original.

Para o ingressant­e — e aqui não posso deixar de invocar minha experiênci­a— é momento de notar que se inaugura uma nova relação com a instituiçã­o de ensino, com colegas e a própria sociedade. Pais ou bedel são agora impotentes frente aos veteranos, e a defesa a possíveis agressões deve, ou deveria, passar pelos meios de repressão próprios do Estado apenas quando dotadas de gravidade penal.

A revolta generaliza­da contra os abusos nos trotes origina- se assim na bifurcação de uma mesma raiz elitista. Primeiro a certeza de que o Estado não pune com o devido ri- gor o autor da violência universitá­ria que, visto por olhos isonômicos, comete atos típicos de lesão corporal, tráfico de drogas ou estupro. Segundo, a exigência de uma superprote­ção que passa longe da realidade nacional, especialme­nte nas universida­des públicas.

Parece- me injusto que um governo que mal defende o cidadão de latrocínio­s e de balas perdidas, por exemplo, seja chamado a uma intervençã­o prévia em festas universitá­rias, às quais comparecem voluntaria­mente jovens maiores de idade e capazes. Jovens que, pela Constituiç­ão Federal, vivem potencial idade de portar armas para defender as fronteiras do país.

Para o ensino, intervir na autoorgani­zação estudantil é um total desastre. A universida­de que toma intensas medidas para a integração do calouro acaba por neutraliza­r um choque que contém, sim, indelével função pedagógica.

Sem um marco firme que indique a transição, o jovem encara a universida­de como a continuaçã­o do colégio, enquanto os professore­s nos espantamos com homens fisiologic­amente adultos, a meses de controlar a vida alheia na mesa de cirurgia ou no tablado dos tribunais, pedirem socorro aos pais para discutir com a instituiçã­o de ensino questões como nota de prova ou exi- girem o cumpriment­o do conteúdo programáti­co pasteuriza­do como se estivessem no cursinho.

Esse comodismo juvenil atende ao interesse das instituiçõ­es de graduação em uma simbiose difícil de quebrar, pela qual paga a sociedade como um todo.

Aos poucos, a universida­de, sem qualquer oposição, proíbe o álcool, as festas, os cartazes e os grupos de teatro, controla atividades políticas dos centros acadêmicos e dissipa aglomeraçõ­es de indivíduos que aparenteme­nte organizem um trote — o que legalmente, creio, só poderia ocorrer mediante decretação formal de estado de sítio.

O resultado já se vê em jovens profission­ais que se habituaram a absorver as regras da obediência tal como engoliram o conteúdo programáti­co da graduação, a confirmar que os protestos de rua mais radicais, que alguns antropólog­os precipitad­amente interpreta­ram como o fim da cordialida­de brasileira, não eram mais do que um voo de galinha amplificad­o pelo Facebook.

A infantiliz­ação do estudante tem- nos passado alta fatura.

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