Folha de S.Paulo

CRÍTICA ECONOMIA INTERNACIO­NAL Autor premiado decepciona ao descrever cotidiano do FMI

Livro de ganhador do Pulitzer de 2010 se aproxima de peça promociona­l

- ELEONORA DE LUCENA O ex- diretor- gerente do FMI Dominique Strauss- Kahn, ignorado em livro sobre instituiçã­o

O tema da festa era o Expresso do Oriente. No salão, os convivas podiam degustar comidinhas das cidades relacionad­as com o trajeto do trem: Paris, Estrasburg­o, Munique, Viena, Budapeste, Istambul. Na face mais extravagan­te do evento, uma montanha de sorvete imitava o perfil dos Alpes.

O regabofe foi oferecido por um banco aos participan­tes da reunião anual do FMI, no início dos anos 1980, nos salões da galeria de arte Cor-coran, em Washington. O anfitrião depois quebrou e reforçou a piada entre os frequentad­ores dessas reuniões: instituiçõ­es com problemas dão festas extravagan­tes e caras. Para checar a saúde financeira de um grupo, basta dar uma passada nas festas que promove.

A historinha está em “Money and Tough Love” [ Dinheiro e amor autoritári­o, em tradução livre], de Lia quad Ahamed, que faz um recorte sobre o cotidiano do Fundo Monetário Internacio­nal ( FMI). Durante algumas semanas, em 2012, o autor acompanhou algumas reuniões da entidade, trafegando entre EUA, Irlanda, Japão e Moçambique.

Ahamed mistura um relato impression­ista dos encontros com algumas pinceladas da história da instituiçã­o. O livro faz parte de um projeto da organizaçã­o “Writers in Residence”, que tem entre seus organizado­res Alain de Botton, o polêmico autor de autoajuda ( ou de filosofia do cotidiano, segundo seus admiradore­s).

A ideia aqui é tratar de rotinas de lugares — um navio norte- americano ou uma corporação como a Alcatel- Lucent— com olhar de um escritor renomado. No caso do FMI, o escolhido foi ganhador do Prêmio Pulitzer em 2010 com “Os Donos do Dinheiro”, livro sobre a crise de 1929.

O resultado do trabalho de Ahamed, porém, decepciona. Próximo de uma peça promociona­l, o livro tem o objetivo de mostrar a multiplici­dade das tarefas que envolvem o Fundo. Como uma “reportagem” sob encomenda, o autor descreve superficia­lmente as atividades e incorpora o pensamento econômico que norteia a organizaçã­o.

Proliferam comparaçõe­s de receitas econômicas com procedimen­tos médicos: remédios amargos, austeridad­e, cortes de gastos, promessas de “cura” depois de aper- tos. Há países bons e ruins; os que fazem a lição de casa e os que gastam demais.

Até que surgem os bons “médicos” do Fundo, muitas vezes incompreen­didos, para tentar salvar os pacientes. Nem sempre acertam. Como numa boa biografia autorizada, Ahamed cita erros de avaliação do FMI e fala da polêmica sobre a eficácia da austeridad­e radical. Nada, porém, ganha profundida­de.

Numa narrativa vaporosa, o autor tenta entender a Irlanda ouvindo um motorista de táxi que culpa as mulheres que forçaram seus maridos a comprar casas luxuosas em tempos de bonança. Afinal, a culpa da crise recai sobre gastadores compulsivo­s e suas mulheres em busca de ostentação.

Sim, bancos negligente­s também tiveram parte na bolha, diz ele. Mas a coisa se resume, na sua análise, ao inverso do axioma de Liev Tolstói na abertura de “Anna Karenina”: As famílias felizes são parecidas; cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira.

Para o autor, países “infelizes” ( como a Irlanda) são iguais ( seriam relapsos?). Países “felizes” têm diferentes formas de sucesso ( via tecnologia, força de trabalho barata). Como se não houvesse relação de poder e dominação entre países; como se o sucesso de uns não dependesse da exploração de outros.

Com seu raciocínio falacioso, o autor coloca o Brasil na lista dos “felizes” — por causa das commoditie­s. Pouco citado, o país aparece numa observação sobre o excessivo número de participan­tes nas reuniões anuais do Fundo. Em 2012 comparecer­am 73 brasileiro­s —“uma estranha anomalia”, afirma. A delegação da Índia, em comparação, tinha apenas 13 pessoas. HISTÓRIAS O sobrevoo oficioso do livro não deixa de trazer algumas curiosidad­es sobre a história do FMI. Como uma rocamboles­ca trama de espionagem nos primórdios da Guerra Fria, que resultou na indicação de um europeu para a chefia da instituiçã­o.

Ahamed mostra como, a partir dos anos 1970, as reuniões do Fundo começaram a ser tomadas por banqueiros, que aproveitav­am os encontros para buscar clientes na América do Sul e no Sudeste Asiático. Lembra que foi por essa época que o FMI passou a ser visto como associado aos interesses dos grandes bancos internacio­nais.

E aconteciam as tais festas. Na descrição econômica do autor, elas parecem, com suas montanhas de sorvete, ter sabor até infantil. Principalm­ente se comparadas às orgias de Dominique Straus-sKahn, que comandou o FMI no início desta década. Aliás, o escândalo sexual do ex- chefe é ignorado na obra.

É compreensí­vel. Afinal, esse é só um livro de marketing. Daqueles que, com edições de luxo, descansam em salas de espera.

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Francois Lo Presti - 11. fev. 2015/ AFP

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