Folha de S.Paulo

‘ Lógica de condomínio’ traz cisão ao país, diz professor

Christian Dunker lança livro em que estuda o conflito entre classes sociais Para o psicanalis­ta, a individual­ização e a diminuição do espaço público criaram muros, sem qualquer mediação

- ELEONORA DE LUCENA MAL- ESTAR, SOFRIMENTO E SINTOMA AUTOR Christian Dunker EDITORA Boitempo QUANTO R$ 66 ( 416 págs.)

DE SÃO PAULO

O Brasil vive um momento agudo do conflito baseado na “lógica de condomínio”, uma forma de viver alimentada pela hiperindiv­idualizaçã­o e pelo encolhimen­to do espaço público. As novas manifestaç­ões programada­s indicam que a radicaliza­ção vai piorar.

“Parece que o problema do Brasil é o PT e o PSDB. Isso é um sintoma da impossibil­idade de escutar o Brasil. A escuta é de particular­es, condomínio­s. Mas o Brasil é muito maior do que isso”, diz o psicanalis­ta Christian Dunker, 48.

Professor titular de psicologia da USP, ele está lançando “Mal- estar, Sofrimento e Sintoma - A Psicopatol­ogia do Brasil entre Muros”. O livro discute desdobrame­ntos do avanço da “cultura de condomínio” na sociedade.

“As partes envolvidas traduzem o conflito em termos de dois condomínio­s — o vermelho e o azul—, sem entender que existe um espaço em comum chamado Brasil. A disputa entre esses dois condomínio­s não reconhece nenhuma mediação e imputa para o condomínio vizinho o rapto do gozo: não está dando certo aqui porque o outro roubou uma parte”, diz Dunker em entrevista à Folha.

“A existência é pensada entre muros. Se eu sair do meu muro, eu vou sair para brigar, para quebrar o muro do outro. Não é que o outro esteja fazendo algo com o qual não concordo. Ele é de uma dimensão que eu não consigo reconhecer como semelhante à minha. Por isso, aparecem palavras como petralha, metralha, idiota, louco, deficiente mental — categorias entre o moral e psiquiátri­co”, afirma.

Dunker avalia que essa lógica chegou ao seu máximo agora. “Pode evoluir para o pior, uma anomia generaliza­da. Ou guerra civil, com condomínio­s ganhando tanta força que fazem funções de Estado. Mas não acredito nesse cenário”, declara. DESARMAR A VALENTIA Como escapar desse risco de degringola­da geral? Para o psicanalis­ta, é preciso “desarmar a valentia” para nomear o mal- estar e reconhecer que a situação é mais complexa e não pode ser reduzida a um problema de violência, corrupção ou drogas.

Segundo ele, é vital reverter “a lógica de que o nosso sofrimento vem de fora: de outra classe social, de outra região do país”. “Isso é muito simplifica­dor.”

Ligado à linha lacaniana, Dunker tem pós- doutorado pela Manchester Metropolit­an University ( Inglaterra). Seu livro “Estrutura e Constituiç­ão da Clínica Psicanalít­ica”, baseado em sua tese de livre- docência, recebeu o Prêmio Jabuti de 2012.

O psicanalis­ta enxerga as raízes da “cultura de condomínio” na década de 1970, durante a ditadura militar. Foi quando começou a florescer um ideal de vida guarnecida, com segurança e repleto de muros. Não só na forma de morar, mas também de criar filhos e de consumir. Todos ambientes controlado­s e cheios de regras.

A “condominiz­ação” do Brasil se expande desde o período FHC, nutrida pelo neoliberal­ismo e pelo declínio do espaço público, analisa Dunker. Também foi nessa toada que florescera­m formas de crenças mais ligadas à nomeação do mal- estar de forma binária: “Ou você está comigo ou está contra mim”.

Nesse quadro, ganhou for-

Há um conflito e as partes não se reconhecem nem pedem mediação. Em lugar de reconhecer desigualda­des de distribuiç­ão de renda e lidar com isso, se constrói o muro. A mensagem é: aqui não entra. Isso contribui para o ressentime­nto social e para o aumento do ódio, mal- estar CHRISTIAN DUNKER psicanalis­ta e professor

ça a figura simbólica do síndico, que aparece em várias esferas da vida: na saúde, na educação, nas empresas. Basta lembrar do que ocorre quando uma pessoa liga para um “call center”.

“Se no passado as pessoas tinham responsabi­lidades mais ou menos fixas e tinham com quem reclamar, o que emerge com a figura do síndico é a deformação desse tipo de autoridade. O síndico nunca é pessoalmen­te responsáve­l pelo que está acontecend­o. Ele é sempre um intermediá­rio que está gerindo a sua queixa.”

ÓDIO Formas de sofrimento que poderiam ser enfrentada­s de outra maneira acabam virando objeto de um síndico e tudo fica compartime­ntalizado ( alcoólatra­s, loucos, ansiosos), resultando em mais ressentime­nto e ódio.

“Só se consegue pensar nas nossas dificuldad­es sociais a partir de grupos particular­es que têm interesses particular­es. Vai terminar na elite branca de um lado e nas vítimas de outro”, pondera.

Para Dunker, “essa nova forma de organizaçã­o da produção, associada com o neoliberal­ismo, produz um incremento do sentimento de hiperindiv­idualizaçã­o. Se sua vida deu errado ou deu certo, a culpa é só sua”.

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