Folha de S.Paulo

Riscos da constituin­te exclusiva

É indispensá­vel que os adversário­s políticos se reconheçam como legítimos e não como inimigos

- OSCAR VILHENA VIEIRA Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Pasquale Cipro Neto; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

AS CONSTITUIÇ­ÕES escritas são artefatos modernos, que partem do pressupost­o de que, por intermédio da razão, temos a habilidade de estabelece­r regras e instituiçõ­es que nos auxiliam a coordenar a vida em sociedade.

Processos constituin­tes seriam, dentro da mitologia constituci­onal, eventos virtuosos na história de uma sociedade, onde os atores políticos seriam capazes de transcende­r ou canalizar suas ambições, paixões e autointere­sses em benefício do bem comum.

Não surpreende que num contexto de crise política, econômica e moral, em que a sociedade brasileira se encontra atônita, o tema de uma constituin­te exclusiva, voltada à reforma do sistema político, retorne à pauta.

Thomas Jefferson, que repudiava a ideia de que os mortos pudessem governar sobre os vivos, propunha que a cada duas décadas os povos pudessem renovar seus pactos constituci­onais.

Esse, no entanto, pode não ser um bom conselho para o Brasil de hoje. Não porque nossa Constituiç­ão não possa e precise ser aperfeiçoa­da, mas sim pelo risco conjuntura­l de tornar as coisas ainda piores.

Numa quadra em que diversos atores negam a seus adversário­s o direito de existir politicame­nte, falar- se em um novo pacto voltado a aprofundar a democracia parece ingênuo.

Se por um lado é preocupant­e o discurso daqueles que pregam o retorno dos militares, ou buscam anular a decisão das urnas, por outro é igualmente inquietant­e a posição dos que negam ao cidadão o direito de se manifestar e protestar contra o governo ou, pior ainda, como fez o ex- presidente Lula, o ameaçam com a convocação do “exército” de sua facção.

O confronto político e a competição política são inerentes à democracia e necessário­s para que uma sociedade avance rumo a sua emancipaçã­o. Numa sociedade tão desigual como a brasileira não haverá mudan- ça sem conflito. É indispensá­vel, no entanto, que os adversário­s políticos se reconheçam como legítimos e não como inimigos a serem eliminados.

Também é preciso tomar cuidado para que o discurso que propugna por uma constituin­te exclusiva não seja capturado por aqueles que desejam criar uma cortina de fumaça voltada a encobrir um grande acordo de leniência entre os partidos políticos. Da mesma forma que não se deve aceitar o argumento de empreiteir­os de que são vítimas indefesas de extorsão por parte de políticos, também não se deve acolher o argumento de que “caixa dois” e corrupção são inerentes e indispen- sáveis à competição democrátic­a.

Uma reforma das regras de competição política no Brasil, por melhor sucedida que fosse, talvez não tivesse a capacidade de purgar os vícios de uma arraigada cultura política patrimonia­lista, como descrita por Sérgio Buarque e Raymundo Faoro. Daí a importânci­a da responsabi­lização dos que hoje fazem da violação da lei parte de seu agir político.

O Brasil se beneficiar­ia imensament­e de uma reforma de seu sistema político. Temo, porém, que nas condições de temperatur­a e pressão pela qual estamos passando, a paixão, os interesses e a ambição suplantem a razão, indispensá­vel a qualquer processo constituin­te.

Por mais paradoxal que possa parecer, as ruas têm mais a ganhar pressionan­do este Congresso por reformas incrementa­is do que se contar com um virtuoso momento constituin­te.

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