Folha de S.Paulo

Meu primeiro trauma foi o beijo na boca de um peixe morto

- GUSTAVO FIORATTI

FOLHA

Não era uma festa estranha exatamente, era um ensaio da Mundana Companhia, parte do processo de criação do espetáculo “Na Selva das Cidades - Em Obras”, com texto de Bertolt Brecht (1898-1956), em um galpão na região da Luz, centro de São Paulo.

Ok: tomada hoje alguma distância daquela tarde em fevereiro, talvez dê para chamar de festa estranha, ao menos para um jornalista habituado à rua Augusta e, no máximo, a algumas situações de sobredosag­em. Convidado para o papel de testemunha, acabei em uma roda de artistas que massageava­m um os pés dos outros entre goles de Catuaba.

Para criar um espetáculo, a Mundana experiment­a —no sentido mais intransiti­vo que esse verbo possa ter. Leva coisas à boca, navega por lugares desconheci­dos da cidade, propõe uma farra em um lugar imaginário, naquela ocasião batizado como Taiti e orquestrad­o com menções ao texto original de Brecht.

Meu primeiro trauma com o Taiti foi o beijo na boca de um peixe morto, que dançava como marionete nas mão do ator Lee Taylor, momento antes de ser descamado e ir à panela. Todos beijaram, não seria eu o único a recusar.

A performanc­e para descamar o peixe recompenso­u o sabor azedo, foi de uma beleza primitiva. Passavam o facão sem cuidado enquanto dançavam ao som de instrument­os percussivo­s. Escamas voavam para todos os lados, refletindo no ar estalos da luz do sol.

Passados alguns dias do ensaio, perguntei a Aury Porto, ator e um dos fundadores do grupo, se algo daquela passagem sobrava no palco. Impreciso, disse que tudo poderia acontecer. Cenas poderiam ser transposta­s. Se nada restasse, tudo bem. “Mas alguma coisa sempre resta.”

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