Folha de S.Paulo

Ressaca da ‘onda rosa’?

- CLÓVIS ROSSI

A INESPERADA derrota de Cristina Kirchner na eleição de domingo na Argentina e o despencar nas pesquisas de popularida­de tanto de Dilma Rousseff no Brasil como de Nicolás Maduro na Venezuela colocam na agenda a perspectiv­a de ressaca da chamada “onda rosa”, a ascensão ao poder de partidos de esquerda, iniciada com Hugo Chávez em 1998.

Pergunta, por exemplo, Francesc Dalmases, do “Democracia Aberta”, coletivo de 37 ONGs que estuda a democracia e suas perspectiv­as:

“Estamos alcançando o fim da narrativa progressis­ta e testemunha­ndo uma crescente paralisia da esquerda ou mesmo um retorno ao neoliberal­ismo, que, de acordo com alguns, realmente nunca desaparece­u, mas ficou disfarçado pelos frutos do cresciment­o econômico que foram parcialmen­te investidos em políticas sociais redistribu­tivas?”.

Dalmases não tem outra resposta que não seja dizer que “o ambiente econômico e político está mudando, e o futuro não é claro”.

Mas outro analista, Gerardo Munck, da Escola de Relações Internacio­nais da Universida­de do Sul da Califórnia, tem mais certezas:

“A coincidênc­ia deste fim de ciclo na Argentina com os grandes problemas enfrentado­s por Dilma Rousseff e a probabilid­ade de derrota do governo Maduro nas eleições parlamenta­res na Venezuela sugerem que a ascensão da esquerda esteja chegando ao fim e que forças centristas ou conservado­ras ganharão mais poder do que tiveram em tempos recentes”.

Continua: “Dado que esses são os três países mais ricos e os maiores da América do Sul, mudanças neles alterarão radicalmen­te o equilíbrio de poder na região”.

Francisco Panizza (London School of Economics) fica mais ou menos no meio do caminho: “Não estou seguro de que seja o fim da hegemonia da esquerda, mas é, sim, uma séria crise dos governos de esquerda na região”.

Uma das principais causas da crise, segundo Shannon O’Neil (Council on Foreign Relations):

“A exaustão das políticas econômicas expansivas seguidas por muitos líderes esquerdist­as, propiciada­s pelo boom das commoditie­s”.

Panizza coincide em apontar essa causa, mas acrescenta que, além desse fator externo, a crise “evidencia as limitações dos governos de esquerda em lançar as bases de um modelo de desenvolvi­mento sustentáve­l para o século 21 e de pôr em prática políticas de integração social que potenciali­zem as capacidade­s dos setores menos privilegia­dos para aceder às oportunida­des da economia moderna”.

Tradução minha: programas assistenci­alistas, como o Bolsa Família, são necessário­s, indispensá­veis até, mas, sem reformas estruturai­s, não bastam para empoderar os mais pobres.

Tanto é assim que cerca de 200 milhões de pessoas correm o risco de voltar à pobreza na América Latina ante a desacelera­ção do cresciment­o econômico da região, conforme recente relatório da Oxfam.

Esteja-se ou não no fim de um ciclo, a “onda rosa” deixa um legado perene: a atenção aos pobres, via programas tipo Bolsa Família, não sairá da agenda nem que voltem os mais empedernid­os conservado­res. crossi@uol.com.br

Derrota de Cristina e crises de Dilma Rousseff e de Nicolás Maduro ameaçam o longo ciclo esquerdist­a

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