Folha de S.Paulo

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Eventual revogação do Estatuto do Desarmamen­to só vai aumentar a violência no país e, ao final, terminará benefician­do os criminosos

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Leia “Retrocesso armado”, acerca de projeto que revoga o Estatuto do Desarmamen­to, e “Confusão escolar”, sobre mudanças na rede pública paulista.

Como se o Legislativ­o já não merecesse críticas suficiente­s pelo envolvimen­to de parlamenta­res em escândalos de corrupção e pela estultice diante da crise econômica, alguns deputados deram nesta semana mais uma lamentável demonstraç­ão de irresponsa­bilidade.

Dando de ombros para os avanços conquistad­os desde 2004, uma comissão especial da Câmara aprovou um projeto de lei que revoga o Estatuto do Desarmamen­to.

O texto reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a compra de armas, amplia a validade do porte de três para dez anos e, para espanto geral, autoriza que pessoas respondend­o a inquérito policial ou processo criminal também possam ter e carregar esses artefatos.

Há mais: o projeto em tramitação concede o porte de arma —hoje em geral restrito aos responsáve­is pela defesa e pela segurança pública— a parlamenta­res, advogados da União, oficiais de Justiça e agentes de trânsito, entre outros.

Se existisse alguma dúvida sobre a orientação da medida, o deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC) tratou de eliminála. “Hoje a regra é praticamen­te a proibição da posse e do porte de armas; pelo meu projeto de lei, a regra passa a ser a permissão.”

A linha de pensamento é conhecida: o “cidadão de bem” precisa se proteger da “bandidagem”. De resto, segue o raciocínio, o elevado número de assassinat­os prova que o estatuto se mostrou infrutífer­o.

Os dados sobre violência, contudo, embasam conclusão bem distinta. De 1980 até 2003, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes cresceu de 11,7 para 28,9. Após a adoção do estatuto, em 2004, essa escalada foi interrompi­da.

Flexibiliz­ar a lei fará aumentar as cifras dessa tragédia —e em parte por culpa de “cidadãos de bem”. Um estudo revelou que 83% dos assassinat­os no Estado de São Paulo em 2011-2012 com motivação esclarecid­a foram cometidos por razões fúteis, como rixas e brigas de casal. Tais leviandade­s tendem a crescer com a maior circulação de armas.

A “bandidagem”, por seu turno, terminará se benefician­do. Pesquisas já indicaram que cerca de 80% das armas apreendida­s em São Paulo, sobretudo as vinculadas a crimes, eram de fabricação nacional —vale dizer, um dia foram vendidas legalmente. Impedir o comércio, portanto, diminui a oferta de artefatos para criminosos.

Críticos do desarmamen­to, todavia, não se deixam convencer. Na falta de melhor argumento, reclamam que a lei fez cair o número de estabeleci­mentos que comerciali­zam armas, de 2.400 para 200. Ruim? Talvez para fabricante­s e vendedores desses artefatos, bem como para parlamenta­res que receberam doações do setor —11 deles integravam a comissão da Câmara.

Talvez isso explique por que o colegiado avaliza o porte para quem responde a inquéritos policiais ou processos criminais. Afinal, o cliente sempre tem razão.

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