Luiz Gê põe abaixo mitos sobre ditadura
Ilustrador reúne em livro trabalhos produzidos no fim do regime em reação a manifestações pela volta dos militares
Publicados na Folha até 1984, desenhos mostram semelhanças entre os anos de chumbo e a democracia
No fim de 2014, quando as ruas foram tomadas por protestos contra o governo da presidente Dilma Rousseff e exortações pela volta do regime militar, Luiz Gê, 64, ficou renitente. “Achei um absurdo”, diz o artista, que viveu a ditadura com a cabeça enfiada em charges.
Tal inconformismo levou-o a garimpar trabalhos feitos na época —alguns dos quais nem mais lembrava, sobretudo desenhos publicados na Folha entre 1981 e 1984. “Comecei a olhar e pensei ‘nossa, cara, isso é superimportante’.” Encontrou um material que traduzia“umtempoterrível,uma crise que, Nossa Senhora, era complicada pra burro”.
As charges estão em “Ah, Como Era Boa a Ditadura...”, uma revisão histórica dos anos finais do regime militar e da reabertura política que, diferentemente de outras obras sobre o período, abdica de temas como tortura, terrorismo e censura para jogar luz sobre a economia da época, “uma coisa indefensável”.
A inflação, por exemplo, “era algo complicado”. Nos quatro anos de que trata o livro, ela foi de 95,65% em 1981 para 215,27% em 1984.
“Quando passaram a bola para os civis, eles [os milita- res] estavam se desvencilhando de uma batata quente terrível que não tinham como segurar”, afirma o artista. “No governo seguinte, chegou a quase 2.000% ao ano.” No último ano completo da presidência de Sarney [1989], a inflação chegou a 1.972,91%.
Naquela época, de acordo com o chargista, todo mundo vivia em bancos. “O dinheiro que você depositava de manhã já tinha que sacar à tarde por causa da desvalorização.” É por isso que, para Luiz Gê, “os caras [que pedem a volta da ditadura] não sabem o que estão falando”. HERANÇA Além das charges, Luiz Gê permeia os capítulos com digressões sobre o período. Chega à conclusão de que, com a retomada da democracia, “tudo mudou para permanecer fundamentalmente igual”.
“Eu gostaria muito que a nossa herança fosse a dos anos 1950 e começo dos 1960, dos anos democráticos em que se conquistaram tantas coisas importantes, como a educação pública, que era superboa e tal”, diz. “Mas, na verdade, a herança que vivemos hoje é a da ditadura.”
Mesmo com as Diretas Já
LUIZ GÊ,
cartunista
“
Não é ‘acabou a ditadura e tá tudo bem’ [porque] a gente não está numa democracia ideal
—que exigiam o fim da interferência militar no governo—, em 1984, e a instituição da Nova República —com eleição indireta—, em 1985, a ditadura (1964-1985) ainda projetava seus vultos na política.
“O Sarney [vice de Tancredo Neves, que não tomou posse e morreu dias depois] não era um governo legítimo, eleito pela população”, lembra o chargista. “Tinha sido resultado de uma espécie de acordo feito entre as oposições consentidas e os militares. Esse presidente que foi colocado no poder era o presidente do partido da ditadura!”, diz.
“E oito anos depois [da reabertura política], ainda havia senadores ‘biônicos’, que eram parlamentares nomeados pela ditadura.”
As chagas do regime militar ainda supuram em diversos âmbitos. A corrupção no poder é uma delas: contrariando os manifestantes que apontam a probidade dos militares, Luiz Gê afirma que “ela começou naquela fase”.
Tal herança impede que o regime militar morra de vez, o que obriga o brasileiro a continuar sua luta pelo aprimoramento do sistema democrático. “Não é ‘acabou a ditadura e tá tudo bem’.” Para Luiz Gê, não está tudo bem. “A representatividade do sistema político que vivemos não é satisfatória. A gente não pode dizer que está numa democracia ideal.” AUTOR Luiz Gê EDITORA Quadrinhos na Cia. QUANTO R$ 59,90 (288 págs.)