CRÍTICA Dupla encontra encaixe perfeito em Beckett
Nada é gratuito na versão de Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas para ‘Fim de Jogo’, encenada em apartamento
Nem Zé Celso acreditava em Oswald de Andrade como dramaturgo, até Renato Borghi ler para ele “O Rei da Vela” em 1967. Aí a peça se revelou, com 30 anos de atraso.
Pode-se vislumbrar algo parecido com Samuel Beckett e “Fim de Jogo”, agora, ao menos para o público local.
No final de uma hora e meia de espetáculo, todos os diálogos e solilóquios ganham sentido. As frases, as imagens. Nada é gratuito, nada mais é “absurdo” —ou chato, o que parece ser a regra com Beckett no Brasil.
São poucos os atores que têm tal talento. A impressão que deixa é que basta jogar um texto em suas mãos, por obscuro que este seja, e se descobrirá do que trata.
Antes de mais nada, tem a ver com sua voz, sua capacidade de articular palavras e frases, de expressá-las com clareza, e não sufocadas por subtexto. Antes de ator, Renato Borghi foi cantor.
“Fim de Jogo”, que é encenada em sua própria casa, introduz como personagem uma imagem de Dalva de Oliveira, uma das cantoras de rádio de que ele gostava, na adolescência, e que já home-
Gabriela Carneiro da Cunha como guerrilheira na peça
nageou antes no palco.
Além da voz, tem a percepção, compreende o que está falando. E tem a qualidade de fabular, de contar uma história e ela se desenhar na mente de quem ouve. É um narrador, sabe fazê-lo, e em Beckett, como em outros dramaturgos-romancistas, contar histórias é pré-requisito.
Percebe-se outra qualidade em Borghi, presente em poucos atores: consegue rir de si mesmo. O ator preferido do dramaturgo David Hare é Bill Nighy exatamente por rir de si e do personagem.
É com essa chave que Borghi encontrou e ajuda a revelar Beckett, ao menos por aqui. Num vídeo que viralizou, de “Esperando Godot” com Ian McKellen e Patrick Stewart, o que se tem é também essa graça. Não buscam um labirinto de pensamento, a priori, e sim o riso simples da dupla de palhaços.
Mais do que quaisquer paralelos existenciais, embora eles sejam bem explorados na encenação de Isabel Teixeira, a felicidade da montagem brasileira está na dupla.
Está no escada, que divide a cena com Borghi. Não é de hoje que se reconhece Élcio Nogueira Seixas como intérprete. Já se percebia sua entrega romântica e sua inteligente ironia, por exemplo, nos primeiros passos dados em “Baal”, há duas décadas.
Na dupla com o Hamm, o “martelo” de Borghi, seu Clov é o “prego” perfeito, como nos duos cômicos mais célebres, de Oscarito e Grande Otelo ao besteirol de Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro.
Aceita riscos, não teme se expor. Até pela diferença de idade, completa Borghi em cena. Difícil imaginar o texto com escola melhor de elenco. QUANDO qui. a dom., 20h ONDE ponto de encontro no Itaú Cultural, av. Paulista, 149, tel. (11) 2168-1777 QUANTO grátis CLASSIFICAÇÃO 18 anos AVALIAÇÃO ótimo