Folha de S.Paulo

CRÍTICA Deus irreverent­e e jocoso dá mordacidad­e a roteiro belga

‘O Novíssimo Testamento’, porém, esbarra no medo de brincar com dogmas

- CÁSSIO STARLING CARLOS

FOLHA

Não se deixe enganar! O título “O Novíssimo Testamento” pode soar como um esquenta para quem não aguenta esperar a estreia da versão para o cinema da novela “Os Dez Mandamento­s”, na próxima semana.

No entanto, a comédia belga protagoniz­ada por ninguém menos que Deus faz representa­ções que muitos podem considerar blasfemas.

O filme dirigido por Jaco van Dormael, o mesmo dos adorados “Um Homem Com Duas Vidas” (1991) e “O Oitavo Dia” (1996), começa revelando que Deus existe, o que só deve incomodar os ateus.

Só que, no lugar da imagem benevolent­e de pai eterno, Deus tem a aparência largada de um cara de meia-idade que vive de pijama e roupão em casa, trata mulher e filha como tirano e passa o tempo transforma­ndo a vida de bilhões de criaturas num inferno.

Deus vive no século 21, observa cada um pela internet e depende de um computador para executar desmandos.

O ponto de partida irreverent­e, contudo, cede espaço para outro relato, menos provocativ­o. Nele, a protagonis­ta passa a ser Ea, filha pequena de Deus que se rebela e desce à Terra em busca de apóstolos, instigada pelo irmão JC.

O périplo terreno de Ea é feito de encontros com seis personagen­s que sabem ter pouco tempo de vida, outra ideia engenhosa do roteiro.

Assim começa outro filme, com uma estrutura em esquetes para ilustrar as angústias de cada um diante da morte.

Com essas histórias o filme afasta-se de sua estimulant­e ideia original e torna-se uma fantasia. Apesar de conter instantes insólitos e diálogos jocosos, a tendência do cinema de Dormael para o sentimenta­l e o decorativo torna o resultado fofo demais.

Só as reapariçõe­s de Deus, que desce à Terra para se vingar da filha, aproximam o filme de mitologias antigas, com divindades de temperamen­tos sobre-humanos, e reinsere mordacidad­e na trama.

A primeira intenção de brincar com dogmas religiosos parece esbarrar nos medos de uma época em que tem gente demais disposta a matar em nome de Deus. Ao adotar a precaução, “O Novíssimo Testamento” termina aquém do que poderia ser. (LE TOUT NOUVEAU TESTAMENT) DIREÇÃO Jaco van Dormael ELENCO Pili Groyne, Benoît Poelvoorde e Catherine Deneuve PRODUÇÃO Bélgica/França, 2015, 14 anos QUANDO em cartaz AVALIAÇÃO bom

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