TATI BERNARDI
Teria que conviver com o peito condecorado pela frase ‘falsa pra cacete’ em neon imaginário?
Dá para ter 1 segundo
de bem-querer por
pessoas repulsivas e
odiosas
ENCONTREI, PERTO de casa, uma mulher com quem trabalhei há uns quatro anos. Nos abraçamos, vi fotos do seu filho, elogiei seu cabelo, disse pra combinarmos algo qualquer dia, acariciei seu casaco fazendo a piada clichê dos últimos dias na cidade “cancelaram o verão” e, porque ainda é janeiro, nos desejamos um bom ano. Ao dobrar a primeira esquina, não pude conter o assombro: mas eu não gostava dela! Cheguei até mesmo a sentir, na época, que eu a detestava! Seria eu, então, falsa como aquelas pessoas falsas pra cacete?
Pensei seriamente em alcançar a fulana e dizer que o seu cabelo estava péssimo —luzes muito largas e marcadas na raiz, ou é a volta dos anos 90 ou a escolha do mais vagabundo salão de beleza—, que eu temia pelo futuro psíquico de seu rebento e presumia um dia vê-lo associado a escândalos sexuais bizarros; que eu jamais deveria ter tocado em seu casaco: bruxas macabras soltam caspas amestradas e sanguinárias e agora minha mão certamente cairia enquanto escovava os dentes e eu morreria espumando, uma vez que estaria impossibilitada de fazer o devido bochecho. Que eu, do fundo do coração, desejava ainda mais inflação e desemprego e alta do dólar e temperaturas descontroladas e mosquitos malfeitores —mas só pra ela. Pra encerrar, diria que prefiro inflar meu cólon numa colonoscopia sem sedação do que ter que olhar pra sua face novamente. Eu era honesta!
Tarde demais, o desafeto sumira. Mando um WhatsApp? Algo simples e direto como: “Na verdade te acho péssima, morra”. Procurei o número, mas eu havia deletado. E agora? Teria que conviver pra sempre com o peito condecorado pela frase “falsa pra cacete” em neon imaginário? Teria que passar por aquela rua, naquele horário, pelo resto da vida, até cruzar com aquele ser desprezível e poder socar sua cara e por fim ter a garantia eterna de que eu era boa pessoa? Mas espera um pouco: na hora eu não fui movida por dissimulação e sim por uma espécie de senilidade. Como eu pude experimentar ternura genuína por tão torpe senhora?
Ela explodia seu entorno com a técnica mais básica (muito usada por adultos que jamais superaram a criança cruel que foram) e, no entanto, infalível: falava pra todo mundo que todo mundo falava mal de todo mundo e colocava todo mundo contra todo mundo. Ela alternava dois asquerosos tipos de “prestar atenção” no outro. Ou nos olhava com piedade forçada, pra deixar bem claro que era superior, mas tinha compaixão. Ou encarava estatelada roupas e cinturas e sapatos enquanto falávamos algo pessoal, como um raio-X cínico e superficial. Miava ronronante quando aparecia um homem rico na produtora, mas bocejava entediada, com um bafo seco de ansiolítico disfarçado de empáfia, quando éramos ou pobres ou mulheres (e principalmente os dois ao mesmo tempo). Era intragável.
Fiquei feliz simplesmente porque estou livre da convivência? Porque sou feliz e ponto? Porque tomo efexor pela manhã? Finalmente encontrei hortelã orgânico plantado e nada me abalaria? Não. Eu tinha sentido algum carinho real em encontrá-la. Assim como podemos planejar o esfaqueamento de um namorado estimado e adorado apenas porque encontramos sua digitais diariamente impressas em todos os espelhos e vidros meticulosamente limpos da casa, podemos ter um segundo de bem-querer improvável por pessoas repulsivas e odiosas. Deu-se apenas que, sem intento gerenciado ou elucidação espontânea, prezei verdadeiramente aquela mulher, naquela manhã, perto de casa.