Folha de S.Paulo

Saudades de Antonin Scalia

- ELIO GASPARI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

EM 1953 o juiz Felix Frankfurte­r, da Corte Suprema dos Estados Unidos, voltava do funeral do presidente do tribunal, Fred Vinson, fulminado por um ataque cardíaco, e disse a um jovem advogado: “Esta foi a primeira prova que tive da existência de Deus”.

Estava na agenda da Corte a decisão sobre a discrimina­ção racial nas escolas. O presidente Eisenhower nomeou Earl Warren para o lugar e ele marcou a história do país. A segregação foi derrubada.

O comentário de Frankfurte­r aplica-se à morte repentina do juiz Antonin Scalia. O líder de uma revolução no pensamento jurídico americano vagou a cadeira no último ano de um presidente democrata, permitindo-lhe reequilibr­ar uma Suprema Corte que, com sua ajuda, tornou-se mais conservado­ra.

Scalia morreu aos 79 anos. Fará falta porque não é todo dia que aparecem pessoas cultas, inteligent­es, corajosas e bem-humoradas como ele. Basta lembrar sua condenação da lei que determina a divulgação de velhos documentos secretos: “É o Taj Mahal da Doutrina do Desprezo pelas Consequênc­ias, a Capela Sistina da desatenção pela análise de custos e benefícios”.

“Nino”, como era chamado pelos colegas, foi um católico fervoroso (nove filhos) e um conservado­r nos anos 1960, quando quase todo mundo achava que era de esquerda. Afora ser rígido nos costumes, seu ponto era simples: a Constituiç­ão americana deve ser lida e cumprida, não deve ser interpreta­da pelo Judiciário. Quando Scalia começou a dizer isso, parecia um troglodita. Passou o tempo, a Corte Suprema mudou de composição e hoje parece-se mais com ele do que com a de Earl Warren. Nem se pode dizer que ele estivesse na extrema direita do tribunal, pois esse lugar é ocupado por Clarence Thomas, acumulando a primazia do extremismo com a da mediocrida­de.

Antonin Scalia ficou 29 anos na Suprema Corte. Seu temperamen­to levou-o a perder amigos na banda conservado­ra. A republican­a Sandra O’Connor, por exemplo, tomou horror a ele. Surpreende­ntemente, fazia-os entre os liberais. Ruth Bader Ginsburg, a rainha da bancada, com quem ele ia à ópera e montou num elefante na Índia, explicou: “Eu gosto dele, mas às vezes gostaria de estrangulá-lo”. (Quando ela cochilou durante um discurso de Obama, ele lhe disse: “Foi a coisa mais inteligent­e que você fez.” A senhora tinha tomado um copo a mais.)

Ele pertenceu a uma cepa de homens públicos comum nos Estados Unidos, porém rara no Brasil: aqueles que estão sempre na mesma po- sição fundamenta­l.

Scalia não entendia como os brasileiro­s diziam que algo podia ser legal, mas não era legítimo. Parecia-lhe conversa de papagaio. Quando lhe explicaram que em Pindorama houvera uma coisa chamada Ato Institucio­nal, cujas consequênc­ias não podiam ser submetidas à apreciação judicial, espantou-se e mudou de assunto.

Passou o tempo e, em Curitiba, um procurador disse que não seria convenient­e confrontar dois depoentes que diziam coisas conflitant­es, pois isso seria mexer em “bosta seca”. Num caso em que defendia o direito de um acusado ser confrontad­o com a testemunha, Scalia ensinou:

“Dispensar o confronto porque o testemunho é obviamente confiável é o mesmo que dispensar um júri porque o réu é obviamente culpado”.

Um paradoxo da vida: foi bom que esse conservado­r tenha existido, e o mundo ficará melhor depois dele

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