Folha de S.Paulo

Banalidade do mal

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Pasquale Cipro Neto; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

VERÃO DE 1918, meu pai tinha 13 anos e a gripe espanhola assolava o mundo. Pense no Holocausto, multipliqu­e por oito, adicione dois milhões e terá o número de mortos causados por ela: 50 milhões no planeta.

Ele via carroças da prefeitura transporta­ndo os cadáveres empilhados e ouvia histórias de famílias que imploravam para levarem seus mortos, já há cinco dias na sala, fedendo de podres. Os carroceiro­s negavam, estavam lotados. As famílias então suplicavam por uma troca: um defunto recente pelo que tinham em casa. Assim, o corpo de um completo desconheci­do era instalado no meio da sala para que o corpo apodrecido do parente pudesse ser levado pela carroça.

Meu pai contava que as iniciais PDF (Prefeitura do Distrito Federal) das carroças eram, por isso, interpreta­das como de “Prefeitura do Defunto Fresco”.

Era a banalidade do mal. Eles estavam acostumado­s.

Quando a microcefal­ia provavelme­nte causada pelo vírus da zika começou a se alastrar no Brasil, dei-me conta de como estamos acostumado­s com o mal, de como os horrores não nos afetam mais. Centenas de filhos incapacita­dos pelo resto da vida, e incapacita­ndo seus familiares que teriam que mantê-los vivos, como vegetais demandante­s, vidas sem nenhum propósito aprisionan­do adultos a elas, numa servidão sem sentido... O horror! O horror!

Pensar que, para alguns, o horror do aborto pode ser maior que o horror de criar um feto microcéfal­o e con- denar centenas (esperemos que não sejam milhares ou milhões) de mulheres e homens a servirdes us tento a vegetais humanos dá a dimensão doque os dirigentes têm como prioridade: a hipocrisia acima do bem do povo.

Areação do governo foi fraca, para dizer o mínimo, sobretudo em comparação coma OMS: lá, decretaram emergência MUNDIAL. O primei roca sode microcefal­ia nos EUA produziu um pronunciam­ento do presidente Obama que dava dimensão à gravidade de como eles percebiam a coisa.

Isso me mostrou que o que causa reação é o contraste: se você vive na lama, o que é mais uma ferida para um pobre leproso? Ele nem nota.

Um amigo me diz que cirurgia plástica é pior que lepra, pois a lepra deforma aos poucos, e a plástica deforma no dia seguinte.

Esta é a base da teoria da tolerância zero: nela, qualquer transgress­ão provocará contraste, será notada imediatame­nte, caso contrário, você se acostuma.

Nós vivemos dentro de uma enxurrada de denúncias, dentro de uma avalanche de lama. Tendemos à insensibil­idade ao horror. Ainda que a Lava Jato seja nosso melhor reality show, podemos ficar insensívei­s às monstruosi­dades que ela traz à tona. Podemos ficar acostumado­s, diferentem­ente dos americanos.

Por isso: não aceite uma janela quebrada, pois senão você terá dúzias delas. Não aceite uma pichação, pois amanhã acidade estará imunda. Não aceite de seu filho uma única transgress­ão sem puni-lo, pois senão amanhã ele se tornará um mimadinho sem volta.

Claro, escrevi isso pensando em Hannah Arendt e sua observação dos males do nazismo: Eichmann não era bem um monstro, ele só era um idiota acostumado com o mal. Assim como nós podemos nos tornar.

As manifestaç­ões de rua estão menores por causa disso: estamos nos acostumand­o com o mal. www.franciscod­audt.com.br

Qualquer transgress­ão provocará contraste e será logo notada; caso contrário, você se acostuma

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