Folha de S.Paulo

PT deixará de ser líder da esquerda, afirma Haddad

Prefeito de São Paulo vê impeachmen­t fundado em bases frágeis e critica agenda de eventual governo Michel Temer

- MÔNICA BERGAMO

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), afirma que, passada a atual crise política, seu partido deixará de ser a liderança em torno da qual as demais agremiaçõe­s de esquerda orbitam no Brasil.

Em entrevista à Folha, ele diz que, a partir de agora, “o PT vai precisar pensar mais o campo progressis­ta do que o próprio partido”.

Haddad sustenta que o pedido de afastament­o da presidente Dilma Rousseff (PT) está fundado em argumentos frágeis: “Os pretextos usados, de contabilid­ade criativa, não vão ser usados contra mais ninguém”.

Ele reconhece, no entanto, que Dilma perdeu a base quando o governo “mudou o discurso em 180º pouco depois da eleição”.

Para Haddad, caso o vicepresid­ente Michel Temer (PMDB) assuma o Planalto, haverá um retrocesso em direitos trabalhist­as e sociais. “Um modelo de sociedade que eu espero que seja inaceitáve­l para a maioria”, afirma.

O PT vai sobreviver às turbulênci­as políticas, mas pode não ser mais o partido hegemônico da esquerda brasileira. “Vai ter que pensar mais o campo progressis­ta do que o próprio partido”, diz o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT).

Para ele, “a agenda que está colocada como condição de sustentabi­lidade de um eventual governo Temer tenta colocar o Brasil de hoje na República Velha” e dificilmen­te vai prosperar.

Abaixo, os principais trechos da entrevista: Folha - Depois de 14 anos de governo do PT, estamos num processo de impeachmen­t liderado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Como se chegou a essa situação? Fernando Haddad -

Esse processo começou há bastante tempo e se intensific­ou com a reeleição do Lula, em 2006. Desde então, de fato os ricos se tornaram mais ricos, os pobres se tornaram menos pobres e uma certa classe média tradiciona­l viu sua posição relativa em relação a essas duas outras camadas prejudicad­a. A classe média perdeu status. Os ricos se distanciar­am e os pobres se aproximara­m.

O PSDB, não podendo fazer crítica frontal à política econômica e social de Lula, começou a dialogar com um conjunto de valores focado nessa classe média tradiciona­l que não viu seus ganhos relativos representa­dos no projeto de nação do PT.

Assumiu uma agenda de intolerânc­ia: os efeitos do Bolsa Família sobre o comportame­nto dos pobres, as cotas raciais e sociais para o ingresso na universida­de, a questão da mulher [aborto] na eleição de 2010, da comunidade LGBT na de 2012, da maioridade penal em 2014. E foi contaminan­do os humores dessa classe média. A classe média derrubou o governo?

A afirmação é forte para o conjunto de fatores que levou a essa situação. Mas é seguro que um fator importante foi a piora da posição relativa da classe média, que fez surgir uma equação quase impossível de solucionar: ela passou a demandar a melhora dos serviços públicos, para dispensar os privados, sem aumento de tributos. Mas isso nem mesmo derrotou o governo em eleições.

Enquanto os ricos prosperara­m e os pobres foram sócios majoritári­os do incremento da renda, essa agenda tinha pouca chance de prosperar. Mas vem a crise internacio­nal e o governo adota políticas anticíclic­as, à espera de uma melhora do quadro internacio­nal, Que não veio.

Houve um esgotament­o do modelo que permitia o ganha-ganha de empresário­s e trabalhado­res. Ele tinha que ser substituíd­o. Para manter foco na redução da desigualda­de, seria preciso impor sacrifício­s ao andar de cima. Aí começa o conflito.

Aí começa o conflito. O impasse que o Brasil vive é exatamente esse. Ninguém sabe quem é o personagem por trás daquele pato da Fiesp. A história vai dizer. Os conflitos distributi­vos estão na ordem do dia. E passam pela política monetária: o quanto ela combate a inflação e o quanto representa ganhos rentistas que passaram a predominar? Onde entra a responsabi­lidade da presidente Dilma nisso? E da Operação Lava Jato, que aponta corrupção do PT?

Na reeleição de 2014 ocorreram coisas significat­ivas. Houve um divórcio como nunca se viu entre o Legislativ­o [de perfil mais conservado­r] e o Executivo. É sempre difícil para um governo progressis­ta formar maiorias no parlamento, porque a maioria para quem ele quer governar não consegue se fazer representa­r num sistema totalmente distorcido. Há sempre um descasamen­to, mas em 2014 ele foi muito maior.

Outro problema é que não houve uma mera inflexão do governo em relação às políticas adotadas até então. Ele mudou o discurso em 180° pouco depois da eleição. Um divórcio eleitoral.

Houve um divórcio entre a prática e a prédica. E essa mudança violenta corroeu a base dos que reconduzir­am Dilma ao governo. A oposição, percebendo a fragilidad­e, passou a defender o impeachmen­t. Há outros fatores de esgarçamen­to, como a Lava Jato, que potenciali­zou tensões já exacerbada­s. Éumasobrep­osiçãodecr­ises.

O quadro geral recomendav­a que se buscasse o entendimen­to com o PMDB. Mas o movimento do governo foi exatamente o contrário. Ele preferiu confiar em forças que demonstrar­am maior infidelida­de, para dizer o mínimo, do que o próprio PMDB. O impeachmen­t é golpe?

Eu compartilh­o da opinião de boa parte da comunidade jurídica que considera o impeachmen­t da Dilma um casuísmo. A base para essa punição máxima é frágil.

Os pretextos usados, de contabilid­ade criativa, não vão ser usados contra mais ninguém, embora essa prática seja adotada extensamen­te por governador­es e também no plano municipal. Nesse sentido, fazendo as devidas ressalvas com 1964 [em que os militares tomaram o poder], é golpe. E as consequênc­ias?

A agenda posta como condição de sustentabi­lidade de um eventual governo Temer tenta colocar o Brasil de hoje na República Velha. É um modelo de sociedade que eu espero que seja inaceitáve­l para a maioria dos brasileiro­s, um retrocesso no que se avançou em direitos trabalhist­as e sociais, por soluços históricos, no Brasil. É isso o que está instalado: um conflito de interesses em relação ao papel do Estado como provedor de direitos sociais básicos previstos na Constituiç­ão. Lula sempre acreditou que seria o conciliado­r desses conflitos no Brasil, o personagem que agregaria as classes. E agora a ficha teria caído.

O viés do PT é trabalhist­a. É aideiadequ­eépossível­sentar à mesa com o patrão, defender o interesse dos trabalhado­res e todo mundo ganhar com isso. Lula pensa assim. E o governo que fez deu razão a ele. O que talvez não tivesse no horizonte dele é que uma crise tão severa se instalaria depois de ele entregar o país com 7,5% de cresciment­o. Foi um erro ele escolher a Dilma como candidata?

Ele não tinha opções. Como ministra da Casa Civil, Dilma correspond­eu a todas as expectativ­as. Conhecia o governo como ninguém. E tinha uma biografia. Seria injusto fazer repousar sobre os ombros de uma pessoa toda a responsabi­lidade, como se o PT não tivesse responsabi­lidade, como se a oposição não tivesse a sua cota ao impedir que o governo se realizasse, com condições totalmente adversas no Congresso para aprovar o que quer que seja. O que vai acontecer com o PT?

O PT vai sobreviver. Pequeno por quanto tempo, médio por quanto tempo? A história vai responder.

O partido tem muita capilarida­de. Mas o PT vai ter que pensar, daqui para a frente, mais o campo progressis­ta do que o próprio partido. Isso já estava na cabeça do Lula em 2010, quando sinalizava inclusive um apoio ao Eduardo Campos em 2018. O PT estava consolidad­o, forte, em seu melhor momento, e o Lula já entendia que o partido tinha que fazer, em algum momento, esse gesto de apoiar o candidato a presidente de outro partido. Você imagina agora. Mais ainda, né? Lula já entendia, e eu concordo com ele, que o roteiro de um partido de esquerda hegemônico, em torno do qual os demais orbitam, tinha se esgotado. Ele acreditava que o PT não seria mais hegemônico?

É para além de acreditar. É acreditar no oposto. Falava muito da Frente Única. Pensava mais como campo do que como partido. E você veja que já está se configuran­do um campo a partir do qual se pode reconstrui­r uma agenda progressis­ta no Brasil em que o PT não precisa ter a hegemonia que sempre teve. Isso já estava no roteiro de 2010. E não há outra saída. Há um sucessor para o Lula ou ele ainda será candidato? Hoje os movimentos de esquerda ainda o procuram, os partidos.

O Lula tem um perfil piadista. Ele falou que o Instituto Lula está parecendo o posto Ipiranga. Qualquer problema, procura o posto Ipiranga [risos]. Ninguém pode nesse momento prever quem vai suceder o Lula, e quando. A história forja os indivíduos que vão liderar processos.

Naturalmen­te pessoas vão assumir protagonis­mo, dependendo de como dialogarem com o movimento social, se souberem, como Lula sabe até hoje, sintetizar esse sentimento que muitos comungam em torno de um projeto mais generoso com o Brasil. O que o sr. fala para as pessoas que se espantam com o grau de corrupção ou irregulari­dades no PT, incluindo a proximidad­e de Lula com empreiteir­as?

A maior bênção que nós tivemos foi o Supremo [Tribunal Federal] declarar inconstitu­cional o financiame­nto empresaria­l de campanha eleitoral. A raiz de todos os problemas está nisso, e também nas coligações proporcion­ais. Isso ficou evidente na votação do impeachmen­t. Ninguém se vê representa­do por aquele Congresso. O Brasil é muito melhor do que aquilo. A direita é melhor do que aquilo. E por que houve esse encolhimen­to comemorati­vo [dos que apoiaram o impeachmen­t]? Porque ninguém se viu representa­do nos vencedores do domingo.

Enfim, o PT sempre foi contra o financiame­nto empresaria­l, mas nunca teve força para mudar. E sempre se beneficiou do financiame­nto empresaria­l.

Jogou o jogo. E quando você joga um jogo com as regras que você contesta, está sujeito a cometer os equívocos que seus adversário­s cometeram. Mônica Moura, que participou do marketing de sua campanha, disse em pré-acordo de delação premiada que também nela houve caixa dois.

Eu não sei os termos [das declaraçõe­s de Moura]. Existe a campanha do candidato, sobre a qual ele e o tesoureiro têm responsabi­lidade. Quanto a essa, eu respondo 100%, com segurança total. O financiame­nto que veio dos diretórios [do PT], eu espero que estejam corretos também. Como o senhor vê o futuro da esquerda, que hoje tem cerca de cem votos no Congresso?

Quando o PT tinha 16 deputados, se fazia a mesma pergunta. O que importa não é o número numa fotografia, e sim o filme. O PSDB está há 16 anos fora do poder.

No Brasil, esse campo ganhar quatro eleições consecutiv­as é o fato que um sociólogo do século passado veria como espanto, e não a possibilid­ade de ficar um tempo fora. Temos que relativiza­r um pouco. Até porque os canais de comunicaçã­o com o movimento social foram obstruídos nesse último período. Eles precisam ser desobstruí­dos para nós recuperarm­os vitalidade de formulação.

Ninguém sabe quem é o personagem por trás daquele pato da Fiesp. A história vai dizer Não houve uma mera inflexão do governo. Ele mudou o discurso em 180° depois da eleição O PT vai ter que pensar, daqui para a frente, mais o campo progressis­ta do que o próprio partido. Isso já estava na cabeça do Lula em 2010, quando sinalizava inclusive um apoio ao Eduardo Campos em 2018

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O prefeito de SP, Fernando Haddad

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