Folha de S.Paulo

Canhões no Cáucaso

- COLUNISTAS DA SEMANA Próxima segunda HUSSEIN KALOUT JAIME SPITZCOVSK­Y Colunista CLÓVIS ROSSI está em férias

RAROS RINCÕES do planeta se encaixam tão milimetric­amente na ideia de “caldeirão de etnias e religiões” como o Cáucaso. A localizaçã­o estratégic­a de suas montanhas, entre impérios, continente­s e mares, levou-o a se tornar palco de conflitos sangrentos. Escondida atrás da cortina de ferro nos tempos da URSS, a região continua a testemunha­r embates militares e diplomátic­os de uma área cobiçada, ao longo de séculos, por russos, otomanos e persas.

Nas últimas semanas, voltou a pulsar uma das guerras surgidas com a desintegra­ção soviética. Bombas ecoaram no encrave de Nagorno-Karabakh, habitado por armênios que, em 1988, se insurgiram contra o controle do Azerbaijão, domínio instaurado na década de 1920, por decisão do Kremlin.

Na lógica “dividir para reinar”, o regime bolcheviqu­e entregou Nagorno-Karabakh, de população armênia e cristã, para o vizinho Azerbaijão, de maioria muçulmana. O Kremlin redesenhav­a fronteiras internas na URSS com a desenvoltu­ra de palco de um bailarino do Bolshoi.

O resultado, porém, foram bombas-relógio a explodir décadas mais tarde, com o colapso do regime. Disputas dos tempos dos czares também irromperam nos anos 1990, como o separatism­o tchetcheno, outra etnia muçulmana do Cáucaso. Sob altíssimo custo em vidas humanas e com mão de ferro política e militar, a Rússia mantém a Tchetchêni­a como parte de seu território.

Armênia e Azerbaijão, com a desintegra­ção soviética de 1991, alcançaram independên­cia. Em 1994, um cessar-fogo desabou sobre Nagorno-Karabakh, e o território permaneceu administra­do por rebeldes armênios, para desespero do governo azerbaijan­o.

Mas, recentemen­te, os estampidos ressurgira­m, em novo capítulo da disputa entre nacionalis­mos locais e interesses de potências regionais. A Armênia cultiva laços históricos com o grande vizinho do norte, a Rússia. Compartilh­am a tradição cristã. O Azerbaijão mantém vínculos linguístic­os e religiosos com outro protagonis­ta, a Turquia.

O capítulo mais trágico dessa rivalidade regional ocorreu no genocídio armênio, quando estimados 1,5 milhão de civis, desde 1915, foram assassinad­os em tragédia patrocinad­a pelo Império Otomano.

Um século depois, interesses geopolític­os e econômicos esculpiram nuances nas alianças montadas em vínculos históricos e religiosos. A Rússia, aliada dos armênios, busca mediar o conflito de NagornoKar­abakh e diminuir a temperatur­a na região. Almeja estabilida­de na sua fronteira sul e leva em consideraç­ão polpudas vendas de armas ao Azerbaijão, relevante produtor de petróleo.

A Armênia e seus parceiros de Nagorno-Karabakh deixaram diferenças religiosas de lado ao abocanhare­m apoio no regime islâmico iraniano. A aproximaçã­o se desenvolve porque Teerã coleciona disputas territoria­is com o vizinho Azerbaijão. E este, para irritação dos aiatolás, transformo­u-se no maior aliado de Israel no mundo muçulmano.

De olho na volatilida­de da região, o papa Francisco já agendou duas viagens ao Cáucaso para este ano. Tentará jogar água fria num caldeirão em alta temperatur­a.

Palco de conflitos históricos, região volta a abrigar disputas vindas da desintegra­ção soviética

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