Folha de S.Paulo

Americana rebate mitos da política do filho único da China

Pesquisa de mãe adotiva de chinesa desmente ideia de que pais biológicos preferiam ter meninos a meninas

- JOHANNA NUBLAT

Por 20 anos, Kay Ann Johnson investigou medida polêmica em respostas às dúvidas da filha sobre sua origem

Kay Ann Johnson, 69, foi uma das primeiras americanas a adotar uma menina chinesa, no início dos anos 90.

Com apenas quatro anos, Lili colocou a mãe contra a parede com uma saraivada de perguntas sobre seu abandono, quando ainda era um bebê de poucas semanas: tinha sido deixada pelos pais biológicos ao ar livre, exposta ao frio? Chorava? Estava no chão ou numa cesta?

“Não queria que minha filha fosse amarga ou sentisse raiva”, disse à Folha Kay Johnson, professora de estudos asiáticos do Hampshire College (Massachuse­tts).

Em parte como uma resposta à filha, ela mergulhou, nos últimos 20 anos, na polêmica do filho único da China, mas por um viés pouco divulgado: o dos pais biológicos sob coerção de uma dura política de natalidade.

“Em vez de as pessoas se perguntare­m por que os pais abandonava­m seus filhos, elas vão direto à pergunta ‘por que deixavam as meninas?’”, afirma.

Após 35 anos em vigor, o governo chinês trocou, em 2015, o padrão de apenas um

KAY ANN JOHNSON

professora de estudos asiáticos filho por casal pela autorizaçã­o para dois filhos. Cálculo oficial indica uma redução de 400 milhões de nascimento­s em três décadas —críticos da medida, porém, acreditam que o número seja menor.

Johnson e uma rede de pesquisado­res chineses entrevista­ram, no interior do país, centenas de casais que abandonara­m seus filhos, pais chineses que adotaram parte dessas crianças e famílias que criaram escondidos seus segundos e terceiros herdeiros para não enfrentar as pesadas punições —multa alta e até esteriliza­ções forçadas.

O resultado, consolidad­o no livro “China’s Hidden Children” (As Crianças Escondidas da China), lançado no mês passado, rebate mitos. Nele, Johnson diz que as meninas eram, sim, desejadas pelos chineses (ideal de um menino e uma menina por família); que elas não eram simplesmen­te deixadas para morrer (os pais biológicos tentavam encontrar um lar para elas); e que havia interesse de adoções por outros casais chineses (dificultad­as à época pelo governo).

O livro cita a estimativa de que, nas décadas de 1990 e 2000, mais de 120 mil crianças deixaram a China em adoções internacio­nais, 85 mil delas para os Estados Unidos. VIDA DE CULPA No campo, muitas vezes, os casais tinham uma cota de dois filhos. Alcançado o limite, narra o livro, as mães corriam o risco de serem esteriliza­das, algo temido como doloroso e perigoso.

Além disso, caso os dois primeiros bebês fossem meninas, acabaria com a possibilid­ade de tentarem um menino —que levaria o sobrenome da família e, mais que isso, era a aposta de segurança financeira na velhice dos pais e avós, numa época de seguridade social em frangalhos, explica Johnson.

A chinesa Wang Xiaolan estava em uma dessas posições quando deu à luz sua segunda filha, em 1993, narra o livro. Sob pressão da família, Wang abandonou a menina horas após o parto, e a família acabou sem saber onde o bebê foi parar, se vivo ou morto.

Três anos depois, ao contar a história aos pesquisado­res, Wang chorou o tempo inteiro, “quase compulsiva­mente, como se pronunciar as palavras pudesse diminuir seu peso sobre ela”. Sete anos depois do segundo parto, ela teve um menino, o filho por quem “tanto foi sacrificad­o”.

“Pela China, há dezenas de milhares de mulheres e homens que vivem com essas cicatrizes, um custo raramente reconhecid­o e documentad­o nas políticas de população da China”, escreve Johnson.

Mais de três décadas depois de implementa­da a política de filho único, seus impactos no país ainda não são totalmente conhecidos.

“Da perspectiv­a da minha pesquisa, o impacto é o sofrimento que deixou, e que não acabou. É uma dor silenciosa dos dois lados que continua e que vai continuar nessa geração, incluindo a das crianças”, afirma Johnson.

A política do filho único deixou sofrimento. É uma dor silenciosa que vai continuar nessa geração”

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Arquivo pessoal Kay Johnson (dir.) e filha, Lili, no antigo orfanato de Wuhan, onde ficou quando criança

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