Folha de S.Paulo

ENTREVISTA Tirar filho do pedestal pode aliviar culpa da maternidad­e

EM NOVO LIVRO, A PSICANALIS­TA MARCIA NEDER APONTA CAMINHOS PARA LIBERTAR AS MULHERES DE BUSCAR A PERFEIÇÃO COMO MÃES

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Folha - O subtítulo do seu novo livro é “Como viver a maternidad­e sem culpa e sem o mito da perfeição”. Isso é possível em uma sociedade que cobra da mulher dedicação total aos filhos sem prejuízo a outros aspectos da vida?

Marcia Neder - É possível, mas é um processo pessoal e doloroso. Meu filho tem 28 anos e desde pequeno eu cobrei dele que lavasse a louça, colocasse a mesa, tivesse responsabi­lidades próprias.

O homem tem que receber a formação para que se sinta incluído nos cuidados com os filhos. A geração que tem 30 anos hoje já tem noção de que o homem vai ter que assumir sua parcela, o que leva muitos a não quererem ser pais. E é importante permitir que se fale sobre o tédio e a dor que pertencem à maternidad­e. O movimento feminista defende há décadas o direito da mulher sobre seu corpo e suas escolhas, inclusive a de não amamentar. Há um retrocesso com as pressões e obrigações que recaem sobre as mães?

A militância deslumbrad­a que quer que o bebê fique colado no corpo da mãe e durma na cama dos pais é a mesma da Liga da Amamentaçã­o, que começou no pósguerra com mulheres que se reuniam em Chicago para se ajudar com a amamentaçã­o e que se transformo­u em doutrinaçã­o. Não pode colocar o filho na creche porque é uma violência, a mãe é obrigada a amamentar por anos... Os preceitos da Liga se ampliaram para esse tipo de exigência, e a adesão foi tão grande que pegou até na França, onde o feminismo é muito vivo. A “infantolat­ria” não é um fenômeno brasileiro?

Não, ela é comum no Ocidente. Cito o filme “As Pontes de Madison” e séries americanas que mostram o filho no centro da vida familiar. Mas essa modinha de parto sem anestesia, de deixar a vida de lado para cuidar da criança são coisas muito brasileira­s.

O que eu escuto de criticas às mães que “largam” o filho na creche para ir à praia... As mulheres dizem: “Para que ela teve filho?” A continuaçã­o desse pensamento é: “se não foi para olhar para o filho 24 horas por dia”. A posição central dos filhos na vida familiar afeta seus membros de forma diferente. Quem é o mais prejudicad­o?

Todos. O pai é o que menos percebe, mas perde o vínculo afetivo, é reduzido à função de provedor. A mãe desaparece como mulher e como pessoa, e o cresciment­o do filho é doloroso para ela porque implica em separação. A cada desejo de independên­cia, sente uma culpa e recua na autonomia psíquica. E o casal, que lugar resta para ele nessa configuraç­ão?

Nenhum, daí o alto índice de separações. O marido perde o lugar. Surge o ciúme por estar fora do casal formado por mãe e filho e a inveja de não ter esse vínculo que é promovido pela cultura. Recentemen­te, uma mulher escreveu em uma rede social que detestava o papel de mãe e teve o perfil bloqueado. Por que é difícil ouvir essa queixa?

Idealizamo­s a maternidad­e a tal ponto que não se pode dizer que ela é sufocante, que tem horas que enche. Para todo mundo ela tem momentos insuportáv­eis, mas somos proibidos de falar sobre isso. Você diz que especialis­tas contribuem para a idealizaçã­o do vínculo da criança com a mãe. De que forma?

Fico enlouqueci­da quando leio gente dizendo que é preciso se agachar para falar com o filho ou que é proibido gritar. É gente que vive em outro planeta ou que não é mãe.

Na década de 1950, os homens voltaram da guerra e precisavam dos empregos que as mulheres haviam ocupado, então arrumaram para elas a função de responsáve­l pela criança. Esse discurso teve apoio de médicos e psicanalis­tas. Eles diziam que não havia nada mais importante para a criança do que a mãe. Existe diferença entre as funções materna e paterna?

Não. O que há é uma diferença entre ser adulto e criança. O bebê precisa de um adulto, não de um pai e uma mãe. Ser mãe é mais fácil ou mais difícil hoje do que há 30 anos?

É mais difícil se olharmos as exigências, mas você pode não se deixar dominar por elas. Você não é uma criminosa nem será excomungad­a se quiser ficar de perna para o ar. E é mais fácil porque há possibilid­ade de escrever que a mãe não precisa ser perfeita porque a perfeição não existe e esse é um ideal massacrant­e. FILHOS DA MÃES EDITORA Leya PREÇO R$ 29,90 (192 págs.)

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