El Salvador anula anistia sobre guerra civil
Decisão permite a país centro-americano rever crimes do regime militar, como morte de arcebispo, e da guerrilha
Políticos temem que decisão do Supremo polarize sociedade; familiares das vítimas e ativistas celebram
Após anos de pressão de entidades externas e de movimentos locais de defesa de direitos humanos, a Corte Suprema de El Salvador decidiu anular a lei de Anistia do país.
Segundo a decisão, a legislação era “contra o acesso à Justiça e a proteção de direitos fundamentais”, segundo o texto emitido pelo tribunal.
Promulgada em 1993, a lei tinha por fim impedir investigações e julgamentos de crimes ocorridos durante os 12 anos de guerra civil (1979-92) que deixaram um rastro de mais de 85 mil mortos e 8.000 desaparecidos no país.
Agora, poderão vir à luz a verdade sobre massacres e assassinatos protagonizados pelas forças em conflito —de um lado o regime militar no poder após o golpe de 1979, e, do outro, a guerrilha Farabundo Martí (FMLN) e agrupações a ela associadas.
“Apesar de os crimes cometidos pela repressão militar terem sido mais numerosos e graves por serem perpetrados pelo Estado, os ex-guerrilheiros também são responsáveis por delitos sérios, como o complô para assassinar prefeitos”, disse à Folha Cynthia Arnson, diretora do progra- ma de estudos latino-americanos do Centro Internacional Woodrow Wilson (EUA).
“É esperado que ambos os lados estejam preocupados.”
De fato, uma das primeiras vozes críticas à queda da anistia foi a do atual presidente de El Salvador, Sánchez Cerén, um dos líderes da guerrilha, hoje transformada em partido político.
Para o ex-rebelde, retomar investigações sobre o período pode desequilibrar o país. “A decisão da Corte não leva em conta o impacto que isso pode ter no frágil tecido social do país”, declarou.
No mesmo tom, o ex-general Mauricio Ernesto Vargas declarou que a derrubada da anistia acirraria a polarização. “El Salvador não tem condições econômicas e políticas de acrescentar mais um ingrediente desestabilizador à sociedade.” PRINCIPAIS CASOS
Entidades de direitos humanos e familiares de vítimas, porém, festejaram. Casos famosos pela brutalidade —como a execução de mais de mil camponeses em El Mozote (1981) ou o assassinato de Óscar Romero, o arcebispo de El Salvador que vinha denunciando abusos do governo, na celebração de uma missa (1980)— poderão ser enfim processados.
Romero, alvo de um esquadrão da morte ligado ao governo militar, é hoje um mártir popular. O papa Francisco reativou seu processo de canonização tão logo assumiu o posto, em 2013.
Do mesmo modo, fica aberta a possibilidade de se investigar os abusos da guerrilha, acusada de sequestros para arrecadar dinheiro para a lutar armada, de assassinatos, de extorsão de camponeses e de complôs para assassinar políticos de forma maciça.
“Este é um momento histórico para os direitos humanos em El Salvador. Confrontar o passado é algo necessário para pacificar uma sociedade ainda muito conflitiva”, disse Erika Guevara-Rosas, da Anistia Internacional.
Para a estudiosa Cynthia Arnson, a decisão põe El Salvador no mesmo caminho de outros países da América Latina que vêm revendo abusos daquela época. “A Argentina e o Chile têm sido exemplos da importância de conhecer os abusos do passado.”
No caso de El Salvador, haviam sido julgados apenas alguns casos que envolviam cidadãos norte-americanos ou europeus.
Na Espanha, foram condenados os militares responsáveis pelo assassinato de cinco padres jesuítas espanhóis.