Folha de S.Paulo

Punição mais dura continua distante para atropelado­res

5 anos após casos emblemátic­os, motoristas suspeitos de beber estão livres

- JULIANA GRAGNANI

Projeto que endurecia a pena se tornou ‘inútil’ após modificaçõ­es dos deputados, afirmam familiares das vítimas

Enquanto casos de atropelame­ntos no Brasil deixam rastro de impunidade e famílias destruídas, o projeto de endurecime­nto da punição aos atropelado­res tornou-se “inútil” após ser modificado no Congresso, segundo seus idealizado­res —pais, mães e irmãos atingidas pela dor de perder alguém dessa forma.

Neste sábado (23) completam-se cinco anos da morte de um deles: Vitor Gurman, então com 24 anos. Também em 2011, Miriam e Bruna Baltresca, mãe e filha de 58 e 28 anos, foram mortas da mesma forma. Desde então, os motoristas que causaram esses atropelame­ntos seguem impunes.

Outros três casos recentes devem seguir sem resultado.

A Folha analisou as consequênc­ias desses cinco casos. Em comum, os motoristas são suspeitos de ingerir bebida alcoólica.

Desde 2012, quando a Lei Seca foi endurecida, a tolerância para o consumo de álcool por motoristas é zero. Se o bafômetro apontar até 0,33 mg/l da substância no ar alveolar —equivalent­e à ingestão de uma a duas taças de vinho—, o condutor estará cometendo infração; acima disso, crime.

Em 2011, as famílias Baltresca e Gurman criaram o movimento Não Foi Acidente, fundamenta­do numa ideia simples: o motorista que ingere bebida alcoólica está premeditan­do um crime. Dessa forma, os casos de embriaguez e atropelame­nto seriam sempre homicídios dolosos.

Em 2013, a proposta foi levada à Câmara. Profundame­nte modificada pelos deputados, não avançou e hoje é descartada pelos idealizado­res.

Um ano após o projeto chegar ao Legislativ­o, 43.780 pessoas perderam suas vidas no trânsito no país, segundo o Datasus —parte delas, vítimas de motoristas embriagado­s.

Desde então, mais famílias se tornaram parte do mesmo drama. Uma das mais recentes foi a de Dorgival Francisco Sousa, 59 , atropelado e morto na rodovia dos Imigrantes. O vigia teve o braço decepado e o motorista fugiu —ele está no Centro de Detenção Provisória, em Diadema. LEGISLAÇÃO A morosidade da Justiça aliada à classifica­ção desse tipo de homicídio, nebulosa em muitos casos, alimentam a sensação de impunidade. “Tenho 67 anos. Será que vou estar vivo para ver esse julgamento?”, diz Manuel Silvino Fernandes, cunhado de Miriam e tio de Bruna Baltresca.

Dependendo das circunstân­cias, motoristas que atropelam e matam pedestres são denunciado­s por homicídio culposo, segundo o Código de Trânsito Brasileiro, ou por homicídio doloso (quando se assume o risco de matar), segundo o Código Penal. Mas é tênue a linha entre a culpa consciente e o dolo eventual.

Na primeira, o motorista, prevê o resultado —a morte—, mas não o aceita como possível. Na segunda, o condutor prevê o resultado e não se importa. Advogados e promotores divergem sobre o tema.

Pela proposta do Não Foi Acidente esse tipo de crime teria pena de cinco a oito anos e o condutor seria obrigado a fazer exame clínico para comprovar a embriaguez. O texto foi mudado na Câmara: a pena passou para de quatro a oito anos e o exame obrigatóri­o descartado.

“Queríamos a partir de cinco anos [a pena] para impedir que o motorista pudesse cumprir penas alternativ­as”, diz Fernandes.

Para o promotor Hidejalma Muccio, responsáve­l por um dos casos, a sociedade não se empenha na mudança da lei “porque no fundo, interessa a todos que continue da mesma forma”, afirma. “Há juízes, promotores e jornalista­s que dirigem embriagado­s.”

Cristiane de Sousa, 41, guarda duas fotos do marido: uma estampada numa camiseta e outra tamanho 3x4, colada num móvel no canto da sala de sua casa de dois cômodos na Brasilândi­a (zona norte de São Paulo). “Todos os dias eu olho para a foto e digo: ‘neguinho, vai ter Justiça’.”

Nove meses se passaram desde que Raimundo Barbosa dos Santos, 38, e José Hairton de Andrade, 52, foram atropelado­s enquanto pintavam uma ciclofaixa no Tucuruvi (zona norte).

A atropelado­ra, Juliana Cristina da Silva, 29, estava embriagada e tentou fugir. Submetida ao bafômetro, apresentou resultado de 0,85 miligramas de álcool por litro de ar expelido —dirigir com níveis acima de 0,33 mg/l é crime. Foi presa e pagou fiança de R$ 15,8 mil. Quase um ano depois, não foi denunciada.

A mulher de José Hairton, Teresa Mendes Lisboa, 43, diz que não tem “alegria para mais nada”. Ela é mãe de filhos de 15 e 12 anos de José Hairton, que tinha mais quatro de outro casamento.

A motorista e sua advogada não quiseram dar entrevista. CHEIO DE AMIGOS A luta de Cristiane e Teresa deve demorar, a julgar por crimes de cinco anos atrás. Dois casos que geraram grande comoção —o de Vitor Gurman, morto aos 24 anos na Vila Madalena (zona oeste), e o de Miriam e Bruna Baltresca, mãe, 58, e filha, 28, mortas próximo ao shopping Villa Lobos— estão sem conclusão.

No dia 23 de julho, Vitor voltava de um jantar na casa de uma amiga quando foi atropelado por Gabriela Guerrero. Ela não fez o teste do bafômetro. À Folha, disse ter bebido uma margarita.

A perícia concluiu que a velocidade do carro estava entre 62 e 92 km/h, numa via cuja máxima era 30 km/h. A motorista diz ter perdido o controle ao tentar segurar o namorado, embriagado.

Vitor era “cheio de amigos, alto astral”, define seu pai, Jairo Gurman, 58. “As pessoas falam que imaginam o que estamos passando, mas não conseguem imaginar.”

O Ministério Público denunciou Guerrero, 33, sob suspeita de dolo eventual. Ela poderá ser julgada num tribunal de júri. Segundo o advogado dos Gurman, Mauricio Januzzi, o julgamento deve ser marcado daqui a um ano —seis após o crime. O advogado de Guerrero, José Luis de Oliveira Lima, nega que ela estivesse embriagada e diz que o “Judiciário vai reconhecer que ela não agiu com dolo”. ALEGRE E FESTEIRA Miriam e Bruna Baltresca andavam perto do shopping Villa Lobos em 17 de setembro de 2011 quando foram atropelada­s por Marcos Alexandre Martins, então com 33. O bafômetro apontou 0,4 mg/l. Miriam era generosa e, Bruna, “super alegre e festeira”, diz seu tio, Manuel Fernandes, 67.

A Justiça decidiu em 2014 que Martins irá a júri por homicídio doloso, mas um recurso levou o processo à segunda instância. Januzzi, também advogado dos Baltresca, estima que o júri deverá ser marcado neste ano.

Para o advogado de Martins, Luiz Fernando Prioli, “a acusação de dolo é uma ficção do Ministério Público para dar uma resposta à sociedade”. TRABALHADO­R “Sincero e trabalhado­r”, como define sua filha, Claudia Vieira, o gari Alceu Ferraz, 61, saiu de casa para limpar a rua de madrugada no centro de SP e não voltou. À 0h30, a estudante Hivena Queiroz Del Pintor Vieira, então com 24, o atropelou e matou. Sua versão: abordada por assaltante­s, fugiu e bateu num objeto, sem saber que o havia atropelado.

Ainda não houve denúncia da Promotoria. Um policial que trabalhou na investigaç­ão diz acreditar que a motorista havia ingerido álcool. Artur Osti, advogado dela, nega. DOCE “A Anariá acordava, dançava e abria a janela para o sol entrar e me chacoalhav­a para vida”, diz, sorrindo, seu marido, o biólogo Sávio Mourão, 34, pouco mais de um mês após perder Anariá Recchia aos 32 anos em 15 de maio deste ano —os dois se casaram em maio do ano anterior.

Erick Silveira dos Santos, 35, atropelou Anariá, Sávio e o ator Thiago Amaral, 33, amigo do casal. Eles estavam num bar na Vila Madalena quando o motorista os atingiu às 23h45. O bafômetro acusou 0,77 mg/l e o motorista foi preso em flagrante, mas solto por excesso de prazo.

A Folha o procurou no endereço fornecido à polícia, mas ele não vive lá. A polícia investiga o caso. “Ela era suave e doce. Casamos e queríamos ter uma vidinha tranquila. Era só deixar o tempo passar e ser feliz”, lamenta Sávio. (JULIANA GRAGNANI)

Cinco anos depois, quem se lembra? Fica a sensação de impunidade MANUEL FERNANDES, 67 tio e cunhado de Bruna e Miriam Baltresca

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Marcus Leoni/Folhapress Ato após morte por atropelame­nto de Anariá Recchia
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Fotos Marcus Leoni/Folhapress Sávio, 34, viúvo de Anariá
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Cristiane, 41, viúva de Raimundo
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Teresa, 43, viúva de José Hairton
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Jairo, 58, pai de Vitor Gurman

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