OS IM PA GÁ VEIS
Antologia de humor atravessa cinco séculos de história e literatura brasileiras, reunindo contos, músicas e até trechos de discursos políticos
“O Melhor do Humor Brasileiro” —ambiciosa antologia com que o escritor Flávio Moreira da Costa volta ao formato que o tornou conhecido do grande público— atravessa cinco séculos da nossa história e literatura. Vai de uma cantoria canibal inesperadamente irônica de índios que viviam em torno da baía de Guanabara, citada por Montaigne nos “Ensaios”, até a história do Gênesis revista e ampliada por Antonio Prata, colunista da Folha.
O autor que mais dá as caras é Machado de Assis —dez vezes—, com crônicas, contos e trechos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “Mas o meu Machado não é o mesmo que as elites brasileiras vêm tentando, há mais de um século, domesticar e até mesmo embranquecer, o que não conseguiram com Lima Barreto, outra presença na antologia. Por que o Lima nunca foi homenageado na Flip?”, pergunta Flávio, que ainda destaca a escolha de dois paulistas ligados ao Modernismo:
“Sem Oswald de Andrade e António de Alcântara Machado, com sua irreverência e crítica cultural, essa antologia seria diferente, talvez mais acadêmica e menos engraçada e provocadora. Eu queria um livro vivo que revelasse para nós mesmos um Brasil sem máscaras ou disfarces”.
Para o antologista, a graça pode estar na desgraça. Ou no jeito melancólico que, por vezes, o humor assume entre nós, herança de Portugal, da África e dos índios. “Uma melancolia que é consequência, basta pensar na miséria dos tristes trópicos. Um humor compensatório. Mas não creio que o humor se defina por uma ideia de nação. Podemos até falar no humor judaico que, ainda bem, contaminou o humor americano, ou no ‘wit’ inglês, que se espalhou pelo mundo e bateu no Machado de Assis.”
Para armar o melhor do humor nacional, Flávio optou por um “viés agregador”, como define. Daí que os pioneiros Gregório de Matos e Manuel Antônio de Almeida, passando por Monteiro Lobato, Rubem Braga, Murilo Rubião e João Ubaldo Ribeiro, convivem com o frasista e polemista Carlos de Laet ou o jurista e político Ruy Barbosa. E até com letras de sambas de Noel Rosa (“Conversa de Botequim”, “Gago Apaixonado”).
“Eu quis tratar de todos os gêneros. Noel, um exemplo do jeito carioca de levar a vida, estava em consonância com a modernidade do país ao compor versos como ‘O cinema falado/ É o grande culpado/ Da transformação’. Já o Ruy Barbosa entrou por trechos de humor que surgem no meio dos seus discursos parlamentares.”
E o que não tem graça no Brasil de hoje? “A caricatura que nos tornamos. Este confronto entre petralhas e coxinhas. Um país que já foi do futebol e hoje é da corrupção. Isso não tem graça nenhuma”, critica.
PERDEU OS CONTOS
O gaúcho Flávio Moreira da Costa, 74, já fez mais de 30 antologias: “Perdi os contos. Ou as contas”, brinca. As mais conhecidas e bem sucedidas em vendas foram lançadas entre os anos de 2000 e 2010 —melhores histórias de humor, terror, horror, crime e mistério, eróticas, fantásticas. Cães e gatos, futebol, música popular brasileira —tudo lhe serviu de inspiração.
Inovou com o excelente “Os Melhores Contos de Loucura”. “Intimidades Célebres: O Livro dos Diários” continua inédito por conta de uma pendência com a Ediouro que se arrasta há cinco anos. Neste mês, será relançado “Os Melhores Contos Fantásticos” (Nova Fronteira).
Contista e romancista premiado (“O Equilibrista do Arame Farpado” ganhou o Jabuti de romance e “Nem Todo Canário é Belga”, o de contos), Flávio conta que as antologias o ajudaram a se profissionalizar e ganhar a vida como escritor.
“Fiz a primeira na adolescência, uma antologia do conto gaúcho, que me deu a alegria de me tornar amigo de Erico Verissimo. Mas precisava descobrir os novos. Lembro de ir à faculdade de medicina de Porto Alegre e encontrar um estudante e contista iniciante. Era o Moacyr Scliar.”
Na apresentação, o organizador ressalva que usou “os textos que foram possíveis (inclusive legalmente)”, referindo-se aos direitos autorais. E, sutilmente, alinhou nas referências bibliográficas no fim do volume aqueles que ficaram de fora —como dois poemas de Drummond, “Política Literária” e “Quadrilha”.
“A rigor, os problemas precisam ser resolvidos entre a editora e outras editoras, herdeiros desligados ou desinformados, e agentes profissionais ou improvisados. Se não houver compreensão, paciência” , resigna-se.
“Por isso, a crítica mais óbvia —por que fulano ficou de fora?— não pode ser levada a sério. Não existe antologia sem ausências, voluntárias ou involuntárias.”
Só para constar (e não perder o humor): este repórter sentiu falta de Ivan Lessa e Reinaldo Moraes.
O MELHOR DO HUMOR BRASILEIRO
ORGANIZADOR Flávio M. da Costa EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 74,90 (456 págs.)