Folha de S.Paulo

Camarneiro dissolve romance em 58 quartos de hotel-livro

- MARCELO MIRISOLA

FOLHA

Exatamente como em qualquer quarto de hotel. “Se Eu Fosse Chão”, livro de Nuno Camarneiro, trata da realidade das coisas embatucada­s e perdidas, que pulsam apesar do tempo. O fato de o autor não entregar a narrativa ou o “ponto de vista” aos espelhos e paredes dos quartos de hotel demonstra, de antemão, rédeas curtas e controle da situação.

Ponto para ele. Camarneiro delimita a atmosfera elegante e muitas vezes perturbado­ra do clima do livro, que é livro e é hotel e é “sítio” também (o sotaque do autor português perpassa os cômodos e dá seu lustro), onde o leitor, desde o primeiro relato, ficará tentado a se instalar como ouvinte, confidente, espelho, mobília ou hóspede do Palace Hotel.

Pode-se dizer que a obra é um desfile de fantasmas, desde o miserável professor Unrat resgatado de um transe de “O Anjo Azul” até histórias triviais de prostituta­s, atores solitários, sugestão de adultérios e adultérios, lembranças carnais de guerra e assassinat­os, encontros e desencontr­os, gente comum e incomum quase sempre em desalinho. A ideia do livro (cada quarto, uma história) é banal, mas funciona porque o autor é maior que a ideia, e escreve muito bem.

No total são 58 quartos (se bem os contei, incluídos os depoimento­s de Miguel recepcioni­sta, Alexandre ascensoris­ta, Arlindo, maître d’hôtel e Lucas jardineiro) di- vididos em pequenas histórias “havidas” nos anos 1928, 1956 e 2015.

A rotativida­de dos quartos dá ensejo a lê-los ou habitálos como se se tratasse de um livro de contos. FANTASMÁTI­CA No entanto, o conjunto de histórias engendrada­s a partir de cada quarto funciona como lastro, e sugere um romance. Ou mais.

Todos esses fatores somados, e a decisão de eliminar a ideia física de um sumário depõe a favor do romance, como se a organizaçã­o ou a estratégia do autor nos levasse a esse gênero.

O mais correto, levando-se em consideraç­ão a natureza fantasmáti­ca das almas dos hóspedes que gritam, viajam no tempo e chancelam suas breves passagens como personagen­s, o mais correto seria dizer que Camarneiro criou o gênero “dissolução”.

Talvez não tenha calculado o risco de ele mesmo se dissolver, isto é, de ter a voz minguada ao longo da narrativa. Isso acontece, e um pouco da força dos primeiros relatos se esvai como se fossem diárias vencidas, todavia não é o bastante para compromete­r o conjunto.

No final, o “Palace Hotel” —seria melhor título do que “Se Eu Fosse Chão”— continua de pé. MARCELO MIRISOLA AUTOR Nuno Camarneiro EDITORA Leya QUANTO R$ 34,90 AVALIAÇÃO bom

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