Folha de S.Paulo

ANÁLISE De perdedor a lenda-viva, ex-presidente personific­ou os dilemas de Israel

- MARCELO NINIO

Não há israelense, vivo ou morto, cuja biografia se confunda mais com a do Estado de Israel do que Shimon Peres. Foi membro de 12 gabinetes, duas vezes premiê, um dos pais do programa nuclear israelense e do processo de paz com os palestinos, mas só aproximou-se do consenso em seu país quando deixou a política ativa para tornar-se peça viva da história.

Nascido na Polônia em 1923, imigrou aos nove anos com os pais na onda sionista, aos 20 já era próximo do líder da independên­cia de Israel, David Ben Gurion, e antes dos 30 tornou-se diretor do Ministério da Defesa.

Último sobreviven­te da geração de fundadores do Estado de Israel, foi testemunha e símbolo dos dilemas, sucessos e fracassos de um país que, desde o estabeleci­mento em 1948, jamais deixou de estar em estado de guerra.

Sua biografia personific­a a trajetória do movimento sionista que criou Israel, da luta pela fundação do Estado, passando pela construção de uma potência militar, até a busca por uma solução para o conflito com os árabes.

Exigiu uma mudança de rumo para Peres, que chegou a apoiar a construção dos primeiros assentamen­tos nos território­s palestinos ocupados na Guerra dos Seis Dias, em 1967, para depois tentar acabar com a ocupação.

Para as novas gerações de israelense­s, Peres tem a imagem de um vovô sábio e apaziguado­r, sempre pronto a dizer frases de efeito, mas sua carreira política foi marcada por disputas renhidas, não apenas com os partidos opositores, mas também dentro de seu Partido Trabalhist­a.

Sua reputação era a de um político carismátic­o, mas manipulado­r. A rivalidade com o companheir­o de legenda Yitzhak Rabin foi uma das mais intensas da política israelense, até virar parceria quando os dois fecharam o primeiro acordo de paz com os palestinos, em 1993.

O acordo rendeu o Nobel da Paz a Rabin, Peres e ao líder palestino Yasser Arafat, porém mais de 20 anos se passaram e a visão de dois Estados para dois povos que moveu as negociaçõe­s está longe de se tornar realidade.

Com o mundo preocupado com a guerra na Síria e a facção terrorista Estado Islâmico, não há pressão externa por uma solução. Peres foi personagem de um dos momentos-chave da derrocada do processo de paz, quando assumiu o governo após o assassinat­o de Rabin, em 1995.

Chocado com o atentado, o país se moveu à esquerda na direção aos trabalhist­as e do processo de paz, mas Peres não quis realizar uma eleição imediatame­nte e aproveitar a onda de apoio. Seis meses depois, perdeu para o direitista Binyamin Netanyahu.

Sem Rabin-Peres no poder, o processo de paz jamais voltaria aos trilhos. Peres saiu da derrota com o estigma de jamais ter vencido uma eleição.

Carregava uma aura de perdedor e de propagar o sonho impossível do “novo Oriente Médio”, título do livro que ele lançou no auge da euforia com o processo de paz.

A tardia reabilitaç­ão pública ocorreu quando foi aprovado pelo Parlamento para ser o presidente de Israel. Aos 84 anos, longe do fogo cruzado da política partidária e ocupando um cargo cerimonial, finalmente passou a ser ouvido em casa e a ser reconhecid­o como uma das grandes personalid­ades da história do país.

Virou lenda-viva, e manteve status após deixar a Presidênci­a para promover legado como defensor da paz.

Em entrevista à revista “Time” no início do ano, mantinha-se o mesmo otimista incorrigív­el sobre a paz com os vizinhos. “As pessoas dizem que é impossível, mas isso é nonsense”, disse.

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Erik Johansen - 11.dez.1994/AFP Shimon Peres e Yasser Arafat recebem prêmio Nobel da Paz

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