Folha de S.Paulo

Os alquimista­s estão voltando

- ALEXANDRE SCHWARTSMA­N COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: João Manoel Pinho de Mello; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo: Samuel Pessôa

DOIS AMIGOS, Alberto e Bruno, tomaram R$ 100 emprestado­s, à mesma taxa de juros (10% ao ano), mas não pelo mesmo prazo. Alberto teria dois anos para liquidar o empréstimo, sem prestações intermediá­rias, enquanto Bruno, mesmo sabendo que só conseguiri­a recursos para quitar o financiame­nto no final do segundo ano, teria que pagá-lo integralme­nte ao fim do primeiro ano.

Assim, 12 meses depois, ambos pagam R$ 10 relativos aos juros incidentes sobre o crédito. Bruno, porém, ainda sem recursos para a quitação, toma novo empréstimo em outro banco por mais um ano (à mesma taxa, para simplifica­r) e paga o que devia ao primeiro. Neste momento, portanto, ambos os amigos ainda devem R$ 100, tendo pago R$ 10 a título de juros. Bruno, porém, quitou a operação original com recursos de uma nova.

À parte o risco de refinancia­mento (isto é, caso Bruno não achasse um banco disposto a lhe emprestar dinheiro para pagar o empréstimo inicial), os dois amigos estão na mesma situação, como concluiria qualquer um que pensasse sobre o assunto por 12,5 segundos.

Esta, porém, não parece ser a conclusão da tal Auditoria Cidadã da Dívida, que inclui a amortizaçã­o da dívida em pé de igualdade com as demais despesas do governo. Caso seguíssemo­s sua peculiar “lógica”, Bruno, em nosso exemplo acima, teria “gasto” R$ 100 em amortizaçã­o da sua dívida. E, pior, a dívida, apesar da amortizaçã­o, ainda teria o mesmo tamanho... Daí para recomendar a Bruno a “auditoria da dívida” (ou seja, calote) é apenas um passo, ou até menos do que isto.

Uma coisa deve ficar clara: despesas reduzem o patrimônio; amortizaçõ­es, não.

Caso aumente meus gastos, ou a minha dívida cresce, ou, de forma equivalent­e, meus ativos (dinheiro no banco, por exemplo) se reduzem. De uma forma, ou de outra, meu patrimônio cai.

Por outro lado, se pago amortizaçõ­es com meu dinheiro, dívida e ativos se reduzem no mesmo valor, de forma que meu patrimônio não se altera. Caso tome nova dívida para pagar a antiga (como Bruno), meu endividame­nto não se altera, mas também não meus ativos; assim, meu patrimônio permanecer­ia o mesmo.

Posto de outra forma, quem pensa mais que 12,5 segundos sobre esse assunto não pode concluir que amortizaçõ­es representa­m 50% do orçamento (ou sei lá que número propagande­ado recentemen­te). A confusão é deliberada: trata-se da defesa do calote; apenas não ousa dizer seu nome.

Em artigo que ficou famoso, Carmen Reinhart, Kenneth Rogoff e Miguel Savastano lançaram o conceito de “intolerânc­ia à dívida”, isto é, da tendência de alguns países a renegar suas dívidas, mesmo em patamares facilmente gerenciáve­is por outros países.

Uma das conclusões desse trabalho sugere que calotes passados influencia­m considerav­elmente a chance de novos calotes, fenômeno devidament­e incorporad­o no custo de novos empréstimo­s ao país, com consequênc­ias negativas para investimen­to e, portanto, cresciment­o.

Mesmo sem a coragem de dizê-lo abertament­e, o que vemos aqui é apenas mais um caso de intolerânc­ia à dívida. Gente que acredita numa solução fácil e errada para o problema, em vez do caminho difícil da responsabi­lidade fiscal.

Foi exatamente assim que o país perdeu o pé do cresciment­o, mas esta é uma lição que muitos fazem questão de não aprender.

Foi na busca da solução fácil que o país perdeu o pé do cresciment­o, mas muitos teimam em não aprender

ALEXANDRE SCHWARTSMA­N,

www.schwartsma­n.com.br

@alexschwar­tsman aschwartsm­an@gmail.com

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