Folha de S.Paulo

Justiça e raiva

- FRANCISCO DAUDT COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Pasquale Cipro Neto; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

“EU SOU o ar que ela respira? Isso é triste, porque ninguém dá bola para o ar, a menos que ele falte.”

A mesma coisa estranha acontece com a justiça e a saúde: se elas estão presentes, a gente nem nota. Por exemplo, se você não estava notando seu pé, é sinal de que ele está com saúde, caso contrário ele chamaria a sua atenção.

Temos notado a justiça, pois neste momento o país atravessa um desses transes históricos em que sua falta precisa ser aguda e amplamente corrigida. E está sendo, num “reality show” melhor do que qualquer novela.

O que é justiça? Hans Kelsen que me perdoe, mas quero um sentido mais primitivo, mais da natureza humana, pois ele está presente desde nosso nascimento, num software genético voltado para a falta de justiça: o sentimento de que alguma coisa está errada, e que precisa ser corrigida. Esse sentimento pode ter o nome genérico de “irritação”, uma perda da paz, que ganhará mais tarde o nome de raiva.

Um bebê molhado ou com fome perde a paz, se irrita e chora, pois é tudo o que consegue em sua impotência. O choro dele nos irrita e corremos para devolver sua paz, de modo a recuperar a nossa.

Uma irritação mais sofisticad­a: o ciúme. A criança agora tem três anos e ganhou um irmãozinho. Toda a atenção da família, que antes era exclusiva dela, se volta para a nova cria.

A criança prejudicad­a tem raiva; já não chora, pois tem mais potência: ela só quer matar o intruso. Dizem-lhe que isso é feio, que ela deve amar o irmão. A raiva não passa, a paz não vem, a justiça não foi feita. Ela não seria feita matando o caçula, mas também não foi feita calando a criança. Uma solução mais sofisticad­a se fazia necessária. A coisa está ficando mais complexa mesmo, e vai piorar.

“Eu não quero vingança, quero é justiça.” Quantas vezes ouvimos isso em entrevista­s na cena do crime? Bem traduzido, daria em: “O que eu quero mesmo é vingança, mas na falta de melhor, fico com essa droga de justiça”.

A pena de Talião era mais próxima do nosso desejo (“olho por olho; dente por dente”), daí a palavra “retaliação”, mas o mundo foi se tornando cada vez mais civilizado, fomos obrigados a abrir mão da violência em favor do Estado (sim, ele tem o monopólio da força bruta, e precisa usá-la de vez em quando) para poder conviver com estranhos.

Já não podemos fazer “justiça com as próprias mãos”, no entanto continuamo­s querendo. É isso que Freud chamou de “mal-estar na civilizaçã­o”.

Ora, “mal-estar” é um eufemismo para raiva. Precisamos fazer alguma coisa para diminuí-la. Precisamos aperfeiçoa­r a justiça, este é o único caminho para a civilizaçã­o triunfar sobre a barbárie, pois ela mora dentro de nós desde pequenos, lembra?

“A justiça tarda, mas não falha”? Errado: a justiça que tarda é falha. A prisão por condenação em segunda instância é um dos meios de aliviar nossa raiva de ver uma justiça que nunca alcança poderosos endinheira­dos.

Seja no âmbito familiar, seja no público, não há caminho para a redução de nossa raiva que não passe pelo aperfeiçoa­mento da justiça.

Dentro do horror, essa é a beleza do momento que vivemos: a busca de uma justiça que seja honrada e igual para todos.

Não há caminho para a redução de nossa raiva que não passe pelo aperfeiçoa­mento da justiça

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