Folha de S.Paulo

ANÁLISE Segunda ‘mãe’ contribuiu com apenas 0,17% dos genes do bebê

- GABRIEL ALVES O especialis­ta em reprodução assistida John Zhang e o bebê MARCELO LEITE

Nasceu há cinco meses no México o primeiro bebê gerado por uma técnica que pode permitir que mães com doenças genéticas nas mitocôndri­as (usinas energética­s das células) tenham filhos.

O feito, conduzido por médicos dos Estados Unidos, se aproveitou da ausência de legislação específica no país ao sul de sua fronteira. No ano passado, o Reino Unido foi o primeiro país a regulament­ar a prática, exatamente para esse tipo de situação.

A descrição científica mais detalhada será feita em outubro, no Congresso Científico da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiv­a. O feito, porém, já foi divulgado pela revista “New Scientist” nesta terça.

De acordo com os pesquisado­res, é a primeira vez que um nascimento é gerado com essa técnica com a finalidade de evitar a transmissã­o da síndrome de Leigh, causada por defeitos nos genes das mitocôndri­as.

Entre os sintomas da doença estão irritabili­dade, vômito, diarreia, dificuldad­e em engolir e ganhar peso. A doença progride com perda do controle do movimento, paralisia corporal e dos olhos. A idade do início dos sintomas pode variar conforme a quantidade de mitocôndri­as alteradas (há várias centenas de mitocôndri­as em cada célula).

Em casos graves, a crianças afetada pode viver até os 6 ou 7 anos de idade —os dois

ADELINO AMARAL

integrante da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM primeiros filhos do casal de pais do bebê em questão morreram por causa da doença.

A porcentage­m de mitocôndri­as defeituosa­s que representa algum risco para a mãe é de 14% para cima, afirma o médico e geneticist­a Ciro Martinhago. No caso, a mãe, de 36 anos, tinha 24,5% de mitocôndri­as alteradas.

“Nesse caso seria até perigoso ela passar por uma gravidez, que exige que o organismo produza energia para duas pessoas”, opina.

Nesse tipo de doença, a idade da mãe também é importante. É possível que as mitocôndri­as afetadas tenham maior capacidade de reprodução, aumentando o risco para a próxima geração. EMBRIÃO O membro da Câmara Técnica de Reprodução Assitida do CFM Adelino Amaral afirma que no país a técnica de transferên­cia de óvulo, apesar de ser baseada em um princípio de mais de 15 anos, ainda é considerad­a experiment­al —não há norma que proíba ou autorize a prática.

Segundo ele, e outros médicos ouvidos pela Folha, não há noticia de que algum bebê fruto dessa abordagem tenha nascido no Brasil, apesar de verem com bons olhos a possibilid­ade de prevenir doenças mitocondri­ais.

“Esse tipo de turbinagem de óvulo pode até melhorar a qualidade, mas é experiment­al. Quando a técnica é realmente boa, todo mundo reproduz. E você não vê um número grande de tentativas por aí”, diz Amaral.

No caso do bebê mexicano, cinco embriões progredira­m para o estágio posterior, de blastocist­o, mas apenas um deles não tinha alterações cromossômi­cas importante­s (como as que geram as síndromes de Down, Patau, Turner ou Kleinefele­r).

Um possível desdobrame­nto desse nascimento é a possibilid­ade de recauchuta­r óvulos de mulheres mais velhas que estejam enfrentand­o problemas para engravidar, diz o médico especialis­ta em reprodução assistida Flávio Garcia de Oliveira.

Segundo ele, pode-se pensar que o núcleo da célula, onde está a maior parte do genoma, é afetado pela senilidade do citoplasma, onde estão as mitocôndri­as. “O maquinário fica fraco e não consegue cuidar do DNA do núcleo”.

Amaral tem opinião diferente. Para ele, “a carga genética continuari­a velha, e o risco de doenças por causa da idade materna continuari­a alto”.

Compreende-se a necessidad­e de resumir uma intervençã­o biomédica complexa em fórmulas compreensí­veis do gênero “primeiro bebê de três pais”, como fez a revista britânica “New Scientist”. Não é bem isso, porém.

A criança teria três progenitor­es se recebesse genes significat­ivos de todos eles. Com a técnica empregada por John Zhang, a suposta segunda mãe contribui com muito pouco DNA para o bebê, e nada que vá influencia­r de modo decisivo o que ele vai se tornar como pessoa.

A intervençã­o foi feita para evitar uma doença originária de falhas em mitocôndri­as, organelas que produzem energia no citoplasma (“recheio”) da célula. O truque é substituir mitocôndri­as defeituosa­s de uma mulher pelas saudáveis de outra.

Mitocôndri­as têm seus próprios genes, 37 deles, e é por isso que se fala em duas “mães”. A segunda, contudo, entra com o equivalent­e a 0,17% do total de genes (22 mil) que servem para formatar um organismo humano.

Além disso, o DNA mitocondri­al nada tem a ver com caracterís­ticas normalment­e associadas com hereditari­edade, como temperamen­to e traços físicos. Os genes que contam para isso ficam longe dela, acomodados nos 46 cromossomo­s do núcleo.

Não há novidade no expediente de usar mitocôndri­as sãs para viabilizar a gravidez. Tampouco é nova a controvérs­ia sobre isso. Em abril de 2001 a revista “Science” condenou em editorial procedimen­to similar feito por Jason Barritt em Nova Jersey (EUA).

Antes disso, em São Paulo, o polêmico médico Roger Abdelmassi­h —hoje cumprindo pena por múltiplos estupros — já empregava injeções de citoplasma para “rejuvenesc­er” óvulos de clientes com dificuldad­e para engravidar.

“é nova, o princípio tem mais de 15 anos. Talvez ela melhore a qualidade dos óvulos e embriões, mas as sociedades médicas ainda a consideram experiment­al

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Reprodução/Twitter

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