Folha de S.Paulo

Uma economia desobedien­te

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Ronaldo Caiado; domingo:

O JORNAL “Valor Econômico” alertou na segunda-feira (14), em manchete quase lacaniana, que, “sem endosso da realidade, (a) economia se descola da expectativ­a”. A reportagem destaca o completo descolamen­to, desde outubro de 2015, dos índices de confiança construído­s a partir das expectativ­as futuras dos agentes —consumidor­es e empresário­s— daqueles que se baseiam na situação atual da economia.

Esquece-se de notar, no entanto, que mesmo os índices de confiança baseados na situação atual estão completame­nte descolados da própria realidade econômica do país, que se agrava a cada dia.

Em 2011, o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman criou um personagem místico —hoje mundialmen­te conhecido— para ironizar a defesa do corte de gastos públicos como solução para a crise econômica. Krugman combatia a ideia de que, se os governos cortassem seus gastos, e só por isso, uma fadinha da confiança apareceria para recompensá-los com investimen­tos e gastos do setor privado, estimuland­o a economia.

Em debate com Krugman em março de 2015, Robert Skidelsky, professor emérito da Universida­de de Warwick e biógrafo de John Maynard Keynes, defendeu a ideia de que a retórica da austeridad­e, por mais equivocada que fosse, poderia deteriorar as expectativ­as dos agentes o suficiente para tornar fracassada uma política de estímulo fiscal em meio à crise. Krugman, no entanto, insistiu que a mera retórica e seu efeito sobre as expectativ­as não seriam suficiente­s para alterar o resultado de políticas, fossem elas equivocada­s ou acertadas.

Em artigo publicado pelo jornal “The Guardian” cerca de um mês depois, em 22 de abril do ano passado, Skidelsky admitiu estar errado naquela ocasião.

“O fator confiança afeta o processo decisório do governo, mas não afeta o resultado de suas decisões. A não ser em casos extremos, a confiança não pode fazer com que uma má política obtenha bons resultados, e sua ausência não pode fazer com que uma boa política obtenha maus resultados, não mais do que pular de uma janela, com a crença equivocada de que seres humanos podem voar, eliminaria o efeito da gravidade”, afirmou.

As inúmeras frustraçõe­s de suas projeções de cresciment­o levaram o próprio FMI a atribuir seus erros ao efeito negativo das políticas de cortes de gastos em meio à crise.

E assim, alguns anos depois de seu nascimento, a fadinha da confiança passou a contar com menos confiança do que a fadinha dos dentes ou mesmo o velho e bom Papai Noel.

Diante do ceticismo cada vez maior nos Estados Unidos e na Europa, a fadinha resolveu mudar-se para os trópicos, onde descobriu uma legião de fiéis. Aqui, o misticis- mo anda em alta mesmo com o fracasso retumbante do corte de gastos e investimen­tos públicos desde 2015 como forma de estímulo aos investimen­tos privados ou de estabiliza­ção da dívida pública.

Sem qualquer preocupaçã­o em transforma­r uma convicção ideológica em uma predição científica passível de refutação, a resposta é sempre de que, se não há sinais de retomada, é porque a política não foi realizada com vigor suficiente.

Diante do descolamen­to entre a confiança dos agentes e a economia real, opta-se por considerar que fatores inesperado­s fizeram com que a economia se descolasse das expectativ­as. Os crentes não admitem que as expectativ­as possam estar contaminad­as pela retórica política, e que, sendo esse o caso, a economia não necessaria­mente vai obedecê-las.

Commenospr­estígioque­o Papai Noel na Europa e nos EUA, fadinha da confiança migrou para os trópicos

LAURA CARVALHO,

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