Folha de S.Paulo

Vírgula e leitura f luente, clareza...

- PASQUALE CIPRO NETO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Guilherme Wisnik; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Pasquale Cipro Neto; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NAS DUAS últimas semanas, trocamos duas palavras sobre o ponto e vírgula e a vírgula, pela ordem.

No último texto, vimos que em alguns casos pode-se optar por duas vírgulas ou por nenhuma, o que ocorre, por exemplo, com expressões adverbiais de matizes diversos (tempo, lugar, causa etc.), como “durante a palestra”, “no mês passado”, “na antessala do Congresso”, “devido às fortes chuvas” etc.

Para que haja as duas opções, uma das condições é que essas expressões estejam intercalad­as, isto é, postas entre termos que tenham relação sintática direta, como sujeito e verbo, verbo e complement­o etc.

Vejamos este trecho: “A Andrade Gutierrez afirmou, por meio de nota, que o acordo ‘está em linha com sua postura, desde o fechamento do acordo de leniência com o Ministério Público, de continuar colaborand­o com as investigaç­ões em curso’”.

Vamos por partes, começando pelas vírgulas que isolam a expressão “por meio de nota”, que foi posta entre a forma verbal “afirmou” e a oração que funciona como complement­o dessa flexão verbal (“que o acordo ‘está em linha com sua...’”).

Como se viu, o redator optou por colocar duas vírgulas para isolar “por meio de nota”. Também teria sido possível redigir sem as duas vírgulas: “A Andrade Gutierrez afirmou por meio de nota que o acordo...”. Não custa relembrar que nesses casos o que não se pode fazer é optar pela “vírgula solteira”, que é aquela que abre, mas não fecha, ou fecha sem ter aberto. Tradução concreta, ou seja, exemplos dos erros: “A Andrade Gutierrez afirmou por meio de nota, que o acordo...”; “A Andrade Gutierrez afirmou, por meio de nota que o acordo...”.

Salvo engano, o primeiro erro é muito mais comum do que o segundo. E por quê? Porque as pessoas tendem a pontuar como leem, como “respiram”. Releia os dois últimos exemplos e constate que é mesmo muito mais comum uma “paradinha” depois de “nota”... Aí é batata: lasca-se uma vírgula (“solteira”, já que la pobrecita não tem par).

Como um dos papéis dos sinais de pontuação é “guiar” quem lê, o bom leitor tende a acreditar na pontuação do redator, o que muitas vezes leva esse bom leitor a perder o rumo. Aí ele tem de voltar e reler.

Veja este caso: “A Andrade Gutierrez afirmou por meio de nota, divulgada na tarde de ontem, que o acordo...”. O caro leitor notou que o redator optou por não isolar a expressão “por meio de nota”, mas isolou a expressão “divulgada na tarde de ontem”, que antecede a oração que começa no “que”?

Ao ver a vírgula depois da expressão “por meio de nota”, o leitor habituado à boa pontuação espera que ocorra exatamente o que ocorreu: surgiu uma nova expressão intercalad­a, e não a oração que age como complement­o de “afirmou”.

Como o leitor pôde e pode ver, a vírgula é (também) uma questão de estrutura, de engenharia, de organizaçã­o. Nos textos formais, o seu emprego adequado é fundamenta­l para que a leitura flua, para que a clareza se estabeleça etc., etc., etc.

Alguém talvez pergunte por que no terceiro parágrafo afirmei que “uma das condições é que...”. Que outras condições há? Ai, ai, ai... Uma das outras condições é o “tamanho” da expressão adverbial intercalad­a. O problema é que o tamanho desta coluna é finito, por isso esse lado da questão ficará para a semana que vem. É isso. inculta@uol.com.br

O leitor hábil tende a crer na pontuação do redator, mas isso muitas vezes o obriga a voltar e reler...

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