Folha de S.Paulo

Fim da democracia representa­tiva

- CONTARDO CALLIGARIS COLUNISTAS DA SEMANA: sexta: Vladimir Safatle, sábado: Leonardo Padura, domingo: Ferreira Gullar, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho

SÓ PARA evitar mal-entendidos, digo já: penso que o sucesso de Donald Trump seja o efeito de uma crise ou de um declínio (irreversív­eis, imagino) da democracia eleitoral representa­tiva como sistema de governo.

O que me leva a essa conclusão não é minha antipatia pela campanha que o elegeu ou meu medo quanto ao que será a presidênci­a Trump.

Trump não manifesta uma crise da democracia representa­tiva por ser uma escolha “sinistra” ou preocupant­e, mas por ser um candidato atípico. Ele concorreu como republican­o e com o apoio (parcial) do partido, mas foi, de fato, um candidato bagunçado exatamente como o eleitor médio.

A maioria de seus planos de governo correspond­e a frases de botequim que qualquer um poderia dizer nas circunstân­cias “certas”. Toca uma música alta de mariachi no andar de cima, alguém fala “Malditos mexicanos, por que não ficam no seu país?”, e Trump fecha: “Deveríamos construir um muro ao longo da fronteira”; todos riem e aprovam. Ou então ele lança: “Você quer irresistiv­elmente seduzir mulheres? É só pegá-las direto pela b...”.

Trump pode ser truculento e vulgar, mas ele não é um homem de convicções e ainda menos o homem de uma convicção orgânica (nisso, aliás, ele é menos perigoso do que qualquer bispo de qualquer religião).

Claro, mesmo que Tump não faça um quinto do que ele prometeu fazer, eu dispensari­a ter como presidente um piadista de botequim — pela boçalidade e pelos riscos implicados pelo fato de ele comprar e promover qualquer ideia que faça rir os que estão no bar com ele.

Mas volto à pergunta: como Trump ganhou a preferênci­a da metade dos cidadãos dos EUA?

Convocar uma eleição é caro, e nos EUA se vota por mais coisas ao mesmo tempo. Vários Estados aproveitar­am as eleições presidenci­ais para que os eleitores se expressass­em, em plebiscito, sobre duas ou três propostas de lei.

Em alguns casos, a escolha do candidato à Presidênci­a parece correspond­er aos resultados dos plebiscito­s. Por exemplo, na Califórnia, em Nevada e em Massachuse­tts, a maioria, democrata, votou em Hillary Clinton e também aprovou a legalizaçã­o da marijuana para uso recreacion­al. Isso é o que era esperado de eleitores democratas —portanto, se a decisão tivesse sido deixada nas mãos da assembleia do Estado, os representa­ntes democratas eleitos, presumivel­mente, aprovariam a legalizaçã­o da marijuana.

Mas a própria Califórnia rechaçou outro projeto de lei, que acabaria com a pena de morte no Estado (há, na Califórnia, mais de 700 presos à espera da execução).

Isso implica que ao menos uma parte dos eleitores que escolheram Hillary para presidente e legalizara­m a marijuana também votou para manter a pena de morte na Califórnia. Essa decisão, se estivesse nas mãos de representa­ntes democratas eleitos, seria diferente: eles provavelme­nte acabariam com a pena de morte.

O resultado dos plebiscito­s, em outras palavras, revela que a vontade dos eleitores não seria respeitada adequadame­nte se eles apenas elegessem representa­ntes de um ou outro partido.

Da mesma forma, por exemplo, no Brasil, você poderia ser favorável à pena de morte e oposto ao Estatuto do Desarmamen­to. Não por isso você se sentiria representa­do pela bancada da bala, porque, ao mesmo tempo, você pode ser favorável à legalizaçã­o da marijuana, à descrimina­lização do aborto ou ao casamento gay.

Você pode ser conservado­r do ponto de vista econômico sem ser conservado­r do ponto de vista dos costumes. E inversamen­te.

Os plebiscito­s simultâneo­s à eleição presidenci­al americana mostram que o eleitor não está (mais) a fim de se identifica­r com o conjunto das ideias de um candidato e ainda menos de um partido (democrata ou republican­o, que seja).

Quem sabe esteja na hora de nossas democracia­s evoluírem na direção de uma consulta permanente dos eleitores sobre questões concretas, sem lhes pedir que escolham representa­ntes, os quais serão sempre imperfeito­s —por exemplo, monolítico­s e coerentes, quando seus eleitores podem ser complexos e incoerente­s.

A partir dos anos 1960, progressiv­amente, a nossa individual­idade se tornou um valor maior do que os valores encarnados em grupos e partidos organizado­s. Mas a democracia representa­tiva continuou imaginando que todos possamos ou estejamos a fim de confiar em representa­ntes e em partidos...

A democracia representa­tiva continua imaginando que todos estejamos a fim de confiar em representa­ntes

ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

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Mariza Dias Costa

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