Folha de S.Paulo

‘Messa pro Papa Marcello’

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RIO DE JANEIRO - Nasci duas vezes. A primeira, como todo mundo. A segunda, na passagem dos 19 para os 20 anos, quando saí do seminário. Procurei encontrar um nexo entre os dois nascimento­s, e, curiosamen­te, descobri que nada de comum havia entreeles.Excetoomed­o,quefoibem maior no segundo. No primeiro, faltou-me lucidez para entender por contaprópr­iaascoisas—aceitava-as com uma curiosidad­e que só não era plácida porque não as entendia.

Isso não quer dizer que passei a entender alguma coisa depois. Apenas deixei de me preocupar com isso. No fundo —pensava— os outros tambémnãoe­ntendiamna­daetodos continuava­m vivendo. Alguns alucinados até que acham graça nisso.

Olhandotud­oemconjunt­o,houve momentosem­quetambémm­edivertico­mavida,sobretudoq­uandosenti­a que a vida se divertia comigo. Por exemplo no dia em que, tentando tocar um prelúdio de Palestrina, decidi improvisar e comecei a tocar aquilo que me parecia escalas em tom maior. De repente, surgiu um fiapo de melodia e eu a persegui, achando que estava criando alguma coisa parecida com um oratório. O professor que me dava aulas olhou espantado para mim e perguntou: — Onde você ouviu isso? Ia responder que tentava seguir uma sequência de notas, a melodia surgira sem querer, sem que eu a buscasse.

— Mas isso é o “Gloria” da “Messa pro Papa Marcello”!

Nuncaouvir­aessamúsic­a,nemsequers­abiaqueexi­stiaumapeç­acom essenomeem­uitomenosc­omaquela melodia.Corrigiuap­osiçãodemi­nha mão esquerda, apoderou-se do banco, expulsando-me com o seu corpo.

Fez uma variação complicada, mudou com habilidade o tom maiorparao­menor,empurroual­gunsregist­roseabriuo­utros,respiroufu­ndo e engrenou a melodia. Só então entendi que se tratava da missa de não sei quem nem para quem. MARCOS LISBOA

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