Morre Mário Soares, ‘pai da democracia’ de Portugal
Presidente e premiê entre os anos 70 e 90, liderou a luta contra o salazarismo
Fundador do Partido Socialista, é visto como o condutor do país à modernidade; governo decreta luto de três dias FOLHA
Não seria despropositado afirmar que o moderno Portugal nasceu não propriamente em 25 de abril de 1974 com a explosão da Revolução dos Cravos, mas um ano e pouco depois, em 19 de julho de 1975, quando o líder socialista Mário Soares, morto neste sábado (7) em Lisboa, aos 92 anos, comanda uma das maiores manifestações populares já realizadas na capital portuguesa, clamando por democracia.
Aquele dia histórico marcaria o princípio do fim da tentação totalitária que animava, por um lado, os jovens oficiais radicais do Movimento das Forças Armadas; de outro, os dirigentes bolchevistas do Partido Comunista Português; e, por fim, embora com menor intensidade, os nostálgicos do regime salazarista (1926-1974).
Foi nesse quadro de tensões que Mário Soares apresentou aos portugueses sua proposta de “socialismo em liberdade”, em oposição aos comunistas e à extrema direita. Justificaria, então: “Sou um homem de esquerda, sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata”.
Com a redemocratização, Soares foi primeiro-ministro por duas vezes, de 1976 a 1978 e de 1983 a 1985. Surpreendeu o país em 1986, lançando-se candidato à Presidência da quando sua popularidade estava no fundo do poço, mas conseguiu se eleger.
Na chefia do Estado, com seu jeito bonachão e firmeza de atitudes, transforma-se no líder mais popular do Portugal democrático, reelegendose em 1991 com mais de 70% dos votos no primeiro turno. Terminou o segundo mandato presidencial em 1996 no ápice do seu prestígio.
Soares estava internado em estado grave desde 13 de dezembro. A causa da morte não foi divulgada. Logo após o anúncio da equipe médica do Hospital da Cruz Vermelha, o governo decretou luto nacional de três dias.
Na segunda (9), o corpo de Soares sairá em cortejo em Lisboa, passando pela pela casa onde morou, a Câmara de Lisboa e o Mosteiro dos Jerônimos, onde será o velório
MÁRIO SOARES
líder português entre os anos 70 e 90 aberto ao público. Agnóstico, ele não será velado em capela e tampouco haverá missa de corpo presente.
No terceiro dia haverá uma cerimônia com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa antes de o corpo ser enterrado no Cemitério dos Prazeres.
O premiê, o também socialista António Costa, não irá ao funeral por estar em visita à Índia até sexta (13). LUTA POLÍTICA Em casa e no Colégio Moderno, Mário Soares aprendeu a odiar a ditadura. Na faculdade tornou-se comunista, chegando a pertencer brevemente ao PCP. Licenciouse em Ciências Histórico-Filosóficas em 1951 e formou-se em Direito em 1957, sempre pela Universidade de Lisboa.
Foi advogado, professor, jornalista e escritor. Recebeu quase 40 títulos de doutor honoris causa, seis no Brasil.
Nos longos tempos de estudante e desde que começou a advogar participou de todos os movimentos consistentes de oposição a Salazar e, depois, a Marcello Caetano.
Pela militância implacável, Soares foi preso 12 vezes pela Pide —a polícia política lusitana, treinada pela Gestapo. Chegou a ser torturado.
Soares, um espírito vivaz a quem os colegas chamavam de “Bochechas”, azucrinou tanto o regime que em março de 1968 é deportado arbitrariamente, por determinação de Salazar, para a ilha de São Tomé, na África portuguesa.
Seis meses depois, o ditador adoece e é substituído por Marcello Caetano. Perdoado, deixa a ilha africana no fim de 68 e, de volta a Lisboa, organiza a participação de grupos oposicionistas nas eleições parlamentares de 1969, quando o país vive um clima de esperança com os acenos liberalizantes de Caetano.
Mais uma vez, porém, as trevas prevalecem, e Caetano volta a apertar os ferrolhos da repressão. A Soares resta o caminho do exílio. Parte com a mulher, a atriz Maria Barroso, e os filhos para Paris, onde foi professor universitário.
Aproxima-se dos líderes europeus da Internacional Socialista, do alemão Willy Brandt ao sueco Olof Palme, e em 19 de abril de 1973 cria o Partido Socialista. Um ano depois, em 28 de abril, retorna como herói para se consolidar na política.
Em seu livro de 2011 —“Um político assume-se”—, fez um balanço de sua vida, em que reafirma sua crença no socialismo democrático. Jamais perdeu o bom humor que o acompanharia até o fim.
Aos 81, comete talvez seu maior equívoco político, candidatando-se à Presidência em 2006. Sofre uma derrota vexatória. Admitiria mais tarde não ter seguido o conselho da família: “De que era melhor que ficasse em casa”.
“homem de esquerda, sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata
PEDRO DEL PICCHIA
Folha