Folha de S.Paulo

A natureza da desinf lação

- SAMUEL PESSÔA COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: João Manoel Pinho de Mello; sábado: Marcos Sawaya Jank;

EM UM debate em outubro de 2015 no Insper, afirmei que estava feliz com a queda de 5% do salário real que houve em maio daquele ano.

Essa afirmação “causou” na internet. A ideia foi que o professor de economia ficava feliz com a infelicida­de dos outros.

Em geral, a vida e as coisas são mais complexas do que a visão maniqueíst­a —no Brasil, mais da esquerda, e nos Estados Unidos, mais da direita— dos fenômenos sociais.

A vantagem de uma rápida queda do salário real é que o ajustament­o inflacioná­rio —isto é, o processo de trazer a inflação para a meta— ocorre com menor aumento da taxa de desemprego.

Ou seja, ao longo de um processo de desinflaçã­o, há um “trade-off” (ainda não encontrei tradução em português, sugestões são bem-vindas!) entre queda do salário real e aumento do desemprego. Quanto maior e mais rápida for a queda do salário real, menor será o aumento do desemprego, e vice-versa.

O conflito distributi­vo em economias de mercado opera com os trabalhado­res pleiteando maiores salários e os capitalist­as pleiteando maiores margens. Se o conflito distributi­vo não for corretamen­te arbitrado pelo banco central, ele destrói a estabilida­de de preços, um dos bens públicos mais importante­s de uma sociedade.

Infelizmen­te, o sinal positivo de maio de 2015 —queda do salário real de 5%— não se materializ­ou no atual ciclo desinflaci­onário.

A inércia inflacioná­ria —da qual a regra de atualizaçã­o do salário mínimo pela inflação passada é um dos maiores condiciona­ntes— requereu taxas elevadíssi­mas de desemprego para promover a queda da inflação, o que finalmente está ocorrendo.

Além da elevada inércia inflacioná­ria, diversos outros fatores contribuír­am para que o atual processo de desinflaçã­o seja tão custoso: inflação em 2014 de 6,5% e muito persistent­e (a inflação média no quinquênio 2010-2014 foi de 6,1%); atraso de quase 20% nas tarifas e no preço da gasolina; atraso no câmbio; e situação de hiperempre­go, isto é, taxa de desemprego abaixo da taxa que não acelera a inflação.

Uma das tragédias das economias de mercado é que, em períodos de crise e ajustament­o econômico, os mais desfavorec­idos sofrem mais. Em que pese todo um Estado de bem-estar social que minora o custo do ajuste, ele sempre será mais sentido pelos mais fracos.

É por esse motivo que a formulação da política econômica tem que ser conservado­ra e cautelosa —como não foi de 2009 até 2014—, evitando experiment­os. Porque, quando a conta dos experiment­os chega, ela é paga pelos mais pobres.

Essa caracterís­tica perversa das economias de mercado deriva do fato de que os mais ricos são aqueles que têm reservas para enfrentar as intempérie­s. A única forma de igualar o jogo é acabar com a propriedad­e privada.

Não é por outro motivo que a esquerda radical sempre pregou o fim da propriedad­e privada. Corretamen­te, percebeu que era a única forma de impedir que os pobres pagassem mais pelos ajustes. A dificuldad­e é que até hoje não se construíra­m instituiçõ­es que tornassem a propriedad­e coletiva dos meios de produção compatível com democracia e com desenvolvi­mento econômico.

Parece, portanto, que a melhor alternativ­a é economia de mercado com Estado de bem-estar social, que minora, mas não elimina a injustiça básica das economias de mercado.

Quanto maior e mais rápida for a queda do salário real, menor será o aumento do desemprego, e vice-versa

SAMUEL PESSÔA,

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