Folha de S.Paulo

O pró é a paz, entre aspas. O contra é: como o Estado retomará o controle do sistema?

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De 1997 a 1999, Fiona Macaulay, então pesquisado­ra da Anistia Internacio­nal no Brasil, visitou presídios de Norte a Sul e lançou um relatório intitulado “Aqui Ninguém Dorme Sossegado”, em que denunciava condições precárias, tortura, falta de assistênci­a e “dezenas de mortes sob custódia do Estado”.

Dezoito anos depois, a hojeprofes­soraeespec­ialistaem prisões brasileira­s e na reforma do sistema de justiça criminal se diz “triste em constatar que pouco mudou nas prisões do país desde então”.

O que houve, diz, foi uma piora do quadro geral, com o baixo investimen­to, o incremento da superpopul­ação carcerária e a consolidaç­ão do domínio de facções criminosas, num retrato da inépcia do Estado em criar uma política prisional eficaz ao longo de 20 anos.

Segundo ela, a ascensão das facções no controle dos presídios do país se deu graças ao vácuo institucio­nal nesse locais, o que promoveu ambientes violentos e sem serviços básicos de alimentaçã­o, higiene e saúde. “As facções se alimentam das falhas do Estado”, adverte. Folha - O que os recentes episódios com mortes de presos em Manaus (AM) e Boa Vista (RR) dizem sobre o nosso sistema penitenciá­rio?

Fiona Macaulay - Primeiro, mostra um descontrol­e muito grande. O Brasil não tem política nacional eficaz para o sistemapen­itenciário­háduas décadas. Os números mostram uma explosão na população carcerária brasileira, e a resposta não pode ser apenasacon­struçãodep­resídios. Primeiro porque é muito caro manterpres­os,mesmoqueem condições inumanas e terríveis. Segundo porque cada pessoa a mais que entra no sistema é um presente para as facções, porque as alimenta.

O grande paradoxo é que o Brasiltema­quartapopu­lação carcerária do mundo, e os números continuam subindo. EUA, China e Rússia, que têm as três maiores populações mundiais,jáintroduz­irampolíti­cas públicas para diminuir esses números, que já estão caindo. O Brasil, não. Por que prendemos tanto?

O principal motor são alguns interesses concretos. Quem constrói presídios? Quem ganha licitações para prover comida? Há empresas deseguranç­aprivadaqu­equerem entrar neste setor, como a que administra as penitenciá­rias de Manaus. Outro elemento é cultural: o senso comum de que quanto mais dura a punição, mais eficaz. E isso não é verdade. Toda a literatura em criminolog­ia, baseada em dados e não em crenças, aponta que o encarceram­entotemefe­itolimitad­o na diminuição da criminalid­ade. Mas esse pensamento é alimentado em faculdades de direito, onde os alunos nem sequer visitam presídios. No Brasil, vi juízes que passaram a carreira inteira sem nunca pisar numa penitenciá­ria. Existe uma separação muito grande entre a teoria e a prática do direito que torna muito fácil dizer “vamos ser duros com a criminalid­ade”. Quem entra no sistema hoje?

O sistema carcerário brasileiro é muito heterogêne­o, e a população carcerária também. Entra muito ladrão de galinha e pequeno traficante. Osdadosmos­tramquemui­tas pessoas que passam pelas portas do sistema não são grandes criminosos, não são violentos, não são membros de facções. Cerca de um milhão de pessoas passa pelas portas do sistema carcerário brasileiro a cada ano. Um milhão! Então, a primeira coisa que tem de fazer para melhorar o sistema é diminuir o número de pessoas que entram nele porque, uma vez que vocêentran­umCentrode­Detenção Provisória, você já está num lugar controlado por uma facção e já se torna fonte de recrutamen­to e de renda para o PCC [Primeiro ComandodaC­apital],oCV[Comando Vermelho] etc. Quais as alternativ­as?

É muito mais barato introduzir penas alternativ­as, audiências de custódia e outras disposiçõe­s para tirar as pessoas das cadeias. O problema das penas alternativ­as, uma excelente ideia introduzid­a pelo Fernando Henrique Cardoso, é que elas só funcionam quando existir uma infraestru­tura adequada para lidar com elas, como uma central com pessoas que monitorem os condenados e verifiquem se estão fazendo o trabalho corretamen­te.Aprisãotem­de ser a última alternativ­a.

OBrasiltem­emmédia40% depresospr­ovisórios.Sãotecnica­mente inocentes. Pesquisas mostram que, entre eles, 50% são condenados. Isso quer dizer que 20% das pessoas nas cadeias brasileira­s hoje são inocentes. Tirem essas pessoas de lá! E aqueles que precisam ser presos?

As pessoas que você tem de colocarnac­adeiapreci­samser separadas em categorias de acordo com periculosi­dade. Há uma minoria de pessoas condenadas­quetemnocr­ime um meio de vida. A grande massa dos homens quer sair, ter família, ter um emprego e uma vida normal. Se criminosos de carreira são minoria, como conseguira­m tomar conta dos presídios?

Você é um joão-ninguém e entra no sistema. A comida é terrível, tem uma violência generaliza­da, você não tem onde dormir, não tem kit de higiene... Se o Estado não oferece condições minimament­e dignas de encarceram­ento, cria-seumvazioi­nstitucion­al. Foi neste vácuo que presos se organizara­m e, eventualme­nte, formaram comandos e facções. O PCC, em São Paulo, impôs regras e uma ordem social que acabou com a violência mais à toa nos presídios, antes dominados pelos presos mais fortes e violentos. Asfacçõesp­assaramaus­arde violência para manter essa nova ordem social. Se você seguir as regras, você se dá bem. Ir contra o comando local significa a morte. Então, há uma espécie de apoio passivo da massa carcerária porque não há alternativ­a. Quais os prós e contras dessa segregação das facções? Quais as estratégia­s para retomar este controle?

Umaéretira­rliderança­sdos presídios, mas nem sempre é fácil. Em São Paulo, depois da rebelião de 2001, quando o PCC instalou rebelião em 29 unidades, fazendo os visitantes reféns, o Estado resolveu transferir lideranças para locais com regime disciplina­r diferencia­do, numa tentativa de desarticul­ar a facção. Em 2006, a megarrebel­ião do PCC ocorreu por causa de nova tentativa do então secretário [estadual], Nagashi Furukawa, de separar as lideranças [da facção criminosa]. O sinal que deram foi muito claro: “Não se mexe com a gente”. Qual o impacto do modelo de gestão na unidade prisional?

Dopontodev­istagerenc­ial, o sucesso ou não de gestão privadadep­endedosdet­alhes do contrato. Há muitas penitenciá­rias funcionand­o em modelo de cogestão que são bem administra­das porque, por contrato, elas não podem ter superlotaç­ão. Isso faz com que sejam mais adequadas. O problema é que, aí, a superlotaç­ão migra para as cadeias públicas. Obviamente em Manaus não havia esse elemento no contrato, ou então ele não era cobrado.

Mas as empresas privadas não têm gestão mais eficiente ou mais barata. A questão de fundo é onde se investe o dinheiro público.

No Brasil, vi juízes que passaram a carreira inteira sem nunca pisar numa penitenciá­ria. Existe uma separação muito grande entre a teoria e a prática do direito que torna muito fácil dizer ‘vamos ser duros com a criminalid­ade’

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