Folha de S.Paulo

Mil vezes Machado

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RIO DE JANEIRO – Um dos melhores livros de 2016 saiu bem no fim do ano; tão no finzinho que se pode dizer, perfeitame­nte, que já é um dos melhores livros de 2017. “Machado”, de Silviano Santiago, é uma viagem íntima e convulsiva aos últimos anos de vida de Machado de Assis. Obra ambiciosa, apresenta uma narrativa complexa, ao borrar as linhas entre biografia, ensaio e romance.

O próprio autor —e suas idiossincr­asias de homem culto e solitário aos 80 anos— é tão personagem quanto o famoso escritor que sofre um ataque epilético na rua Gonçalves Dias, pega com dificuldad­e o bonde no largo da Carioca, passeia o luto no cais Pharoux, come poeira na nova avenida Central. O período do bota-abaixo no Rio nunca antes visto com olhos tão desencanta­dos.

É Silviano escrevendo sobre Machado, e não como Machado, embora a estrutura digressiva do livro, com idas e vindas, lembre o estilo gago e bêbado do autor de “Memorial de Aires”. Quem tentou essa proeza —mimetismo, pastiche, paródia— foi o escritor Haroldo Maranhão em outro romance, “Memorial do Fim”, publicado em 1991. Ponto de contato: se “Machado” mostra os anos do ocaso, entre 1905 e 1908, o livro de Maranhão flagra o Bruxo em seus derradeiro­s dias de vida no chalé do Cosme Velho.

O que nos leva a mais uma obra experiment­al: “Amor de Capitu” (1998). Nela Fernando Sabino recria “Dom Casmurro” sem o narrador original, transpondo a história para a terceira pessoa e, mais uma vez, levantando a lebre: até que ponto a infidelida­de de Capitu teria sido premeditad­a? Quase ninguém notou o livro, pois Sabino na época já estava com a reputação destruída por conta da biografia “Zélia: Uma Paixão”, lançada sete anos antes.

É como escreve o editor Márcio Souza na quarta capa de “Memorial do Fim”: “Com Machado de Assis se vive mil vezes”. VANESSA GRAZZIOTIN

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