É válida a comoção de Streep, mas não só Trump caçoa de repórter com deficiência
DE LOS ANGELES
Na primeira premiação representativa de Hollywood após a eleição de Donald Trump, a política dominou o assunto. Tanto nos discursos quanto nas entrevistas de bastidores —até mesmo na escolha dos vencedores—, o Globo de Ouro 2017, realizado no domingo (8), em Los Angeles, tornou-se uma plataforma de desabafos e insatisfações.
O apresentador Jimmy Fallon, tão criticado por (literalmente) passar a mão na cabeça de Trump em um dos seus programas, saiu um pouco da linha “eu amo todo mundo e sou apenas uma criança em corpo de adulto” para fazer piadas em suas breves intervenções.
Na abertura, disse que “Isto é o Globo de Ouro. Um dos poucos locais nos EUA que ainda honram o voto popular”, uma brincadeira com o fato de Hillary Clinton ter recebido dois milhões de votos a mais que Trump, mas perdido nos colégios eleitorais.
Pegou um pouco mais pesado ao comparar Trump com o monarca mimado e sanguinário da série “Game of Thrones” (“Muitas pessoas estão se perguntando o que teria acontecido se o rei Joffrey tivesse sobrevivido. Vamos descobrir em 12 dias”).
A menção ao nome Donald Trump foi extremamente cautelosa pelas celebridades, tanto na frente quanto por trás das câmeras. Viola Davis, melhor atriz coadjuvante pelo filme “Fences”, explicou sua posição nos bastidores. “Eu vou, acredite se quiser, remover Trump dessa equação, porque acho que é maior que ele”, disse ela.
“Acho que falhamos um pouco, porque não podemos de maneira algum ter alguém na presidência que não seja uma extensão do nosso sistema de crenças. O que isso fala sobre nós? Se você responder isso, terá dito tudo.”
O diretor holandês Paul Verhoeven, após receber o prêmio de melhor filme estrangeiro por “Elle”, foi mais pessimista e direto. “Isso facilmente pode ir em direções que nos levam a uma guerra. Tenho muito medo da presidência de Trump. Claro que tudo pode terminar sendo diferente do que estou pensando, mas os últimos quatro meses não mudaram minha opinião.”
No palco principal, as críticas sutis começaram com o britânico Hugh Laurie, que surpreendeu ao vencer como melhor ator coadjuvante de minissérie ou filme para TV por “The Night Manager”. “Poderei falar que venci o último Globo de Ouro da história”, brincou ele sobre o prêmio concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. “Não quero ser estraga-prazeres, mas é que tem as palavras ‘Hollywood’, ‘estrangeira’ e ‘imprensa’. Acho que os republicanos acham até a palavra ‘associação’ suspeita.”
Meryl Streep aproveitou a deixa no grande momento da noite, quando recebeu seu prêmio Cecil B. DeMille pelo conjunto da obra. “Pertencemos aos segmentos mais desprezados da sociedade americana”, começou a atriz.
“Mas, afinal, o que é Hollywood? Um apinhado de lugares”, questionou com a voz num misto de desgaste e emoção, listando vários presentes que nasceram em lugares diferentes —uma crítica à política anti-imigração de Trump.
“Se mandarmos todos os estrangeiros embora, não teremos nada o que assistir a não ser futebol americano e artes marciais. E isso não é arte”.
Streep ainda defendeu o papel da imprensa neste novo cenário político e lembrou do episódio em que o presidente eleito tirou sarro de um repórter deficiente do “The New York Times” em um comício (veja depoimento abaixo). “Esse exemplo dado por uma pessoa tão poderosa dá permissão a outras pessoas para desrespeitar”, afirmou.
Donald Trump, bastante ativo no Twitter, claro, não perdeu tempo. Na segunda (9), chamou Streep, indicada ao Oscar 19 vezes e ganhadora de três estatuetas, de “a atriz mais superestimada da história”. Em uma curta entrevista por telefone ao “The New York Times”, ele disse não ter visto o discurso ao vivo, mas que “não estava surpreso” com os ataques dos “liberais do cinema”.
E negou ter zombado do repórter. “Nunca zombei de ninguém. Estava questionando um repórter que ficou nervoso por ter mudado sua matéria”, disse o presidente eleito.
O segundo round está marcado para 26/2, com a cerimônia do Oscar.
FOLHA
Uma das minhas labutas mais grossas de vida é vencer sorrisinhos cínicos e desleixos de atenção de quem, à primeira ou à segunda vista, não acredita ou não quer acreditar que um repórter pode trabalhar a bordo de uma cadeira de rodas, sobretudo, em um grande jornal.
E não somente eu, mas colegas surdos, paralisados cerebrais, cegos, que estudaram e se capacitaram como qualquer um para exercer o ofício da “busca da verdade” precisam rebolar e ter sangue frio para que sua condição física ou sensorial não passe recibo de incompetência.
Quando o presidente Donald Trump imita um jornalista com deficiência e comove Meryl Streep, Hollywood e o mundo, lembro-me das fontes que escalaram auxiliares para dar atenção ao “aleijado”, aos que me questionaram se eu “era mesmo da Folha”, aos que desmarcaram entrevista porque poderiam “não saber lidar” com o meu “problema”.
Embora imitar os trejeitos de um jornalista com deficiência seja asqueroso para um mandatário, que deveria dar exemplos de inclusão e de cidadania —justamente, as palavras da atriz—, o impacto da rejeição à mão de obra de um profissional fora dos padrões é mais relevante.
Não menos importante é pontuar que empresas de comunicação não são assim totalmente adeptas ao “todos juntos”. Quantos repórteres com deficiência estão nas grandes emissoras? Quantos atores “malacabados”, como costumo provocar, estão nas produções de cinema?
Quanto mais plural uma redação, uma arte, mais ganham leitores, espectadores.
A defesa da diversidade deve ser maior que a proteção a ridículas imitações e desprezos à forma. Deve ser ampla e avançar na garantia de direitos, de representação e de acesso ao trabalho, sejam eles quais forem.