Folha de S.Paulo

MICK, LONDRES E EU

- PAULO FRANCIS

No avião para Londres, achei que as aeromoças (agora chamadas feministic­amente de assessoras de voo, sendo que “assessor” em inglês não tem feminino), apesar do título feminista, estavam galinhando comigo. Em seguida, que meus dentes tinham caído, ou o cabelo. Depois que a calça rasgara no, digo, na minha “Maggie Trudeau”.

Depois, notei um rapaz ao meu lado, na janela. Parecia uma senhora de cinquenta anos, pele cansada, minha filha. Cabelos escorrendo pelo ombro. Calças de veludo verde, camisa de delinquent­e estilizada, gravata de Fu Manchu, roupa cortada mui estranhame­nte. Tirou as botas de caubói e ficou descalço. Uma caixa de bolinhas na mão, rotativa. Cara familiar. Não olhava ninguém, o que é marca de celebridad­e, não agradeceu as três taças de champagne, eu agradeci as minhas duas.

Era, descobri, Mick Jagger. Todas as moças em chamas, ele nunca me olhou ou me falou. É um bom companheir­o de assento. Não pede licença. Ou melhor, pede, mas não incomoda. Pula por cima da gente, como um chimpanzé craque.

Pensando em você, que não vive a “emoção” do correspond­ente estrangeir­o (que troco por uma choça em Petrópolis, pelo mesmo salário), meu caro leitor (todos os sexos), comecei a anotar mentalment­e a “vida” de Mick.

Papamos a mesma salada. Ai, ai, ai. Tracei um consommé, ele não. Mas, Mick, sopa se toma à noite. Pediu uma lasanha. Eu, um bife malpassado. Era, infelizmen­te, carne inglesa, não americana (nos eua se pode e deve comer carne malpassada. Na maioria dos outros países, ao ponto, se bem que, na França, ao ponto é malpassado).

Menino pobre nunca se cansa de massas italianas. Comecei a fantasiar a gloriosa ascensão de Mick da sarjeta, muito contrarrev­olucioná- ria, porque enquanto existirem Cinderelas, fantasiare­mos que somos a dita. E, no entanto, Mick, ao contrário dos Beatles, assustou a burguesia (ver, entre muitos exemplos, “Citadel”, que alguns acham baseada na batalha de Khe Sahn). Havia algo nele de genuinamen­te subversivo. Isso no tempo em que rock era importante para os garotos, que ainda não se haviam rendido aos confortos da música disco. Hoje rock morreu, disco infesta.

O certo é que Mick não dorme como você e eu. Ele tomou uma bola e começou a ler uma revista. Aí, no meio, segurando a revista, terminávam­os de jantar, fechou os olhos e nessa posição permaneceu horas. Ao acordar, sacou nova bola, sacudiu a cabeçadepo­isdetomá-laeera “um novo homem”. Mick não é o único que vive assim, com uppers and downers, de pílula em pílula...

Londres continua minha cidade quase favorita, apesar de eu vir aqui ver a fauna que mais abomino, os políticos. Agora, os preços são suficiente­s para que os eleitores enxotem os trabalhist­as do poder. Não interessa que os conservado­res sejam piores. São. O fato é que os trabalhist­as não devem ser recompensa­dos com reeleição pelas desgraças que baixaram sobre sua formosa ilha.

Há um mito de que Mick não lê nada. Papo. Flagrei-o lendo o colunista político do Village Voice, Alex Cockburn, a seção de artes e, vexame para o ídolo supremo do inconformi­smo, “palpites para o consumidor”.

Onde está o famoso entourage que percorria o mundo num jato, carregando moças para todas as ocasiões e drogas, sendo recebidos todos em cada porto por massas histéricas? Estará Mick reduzido à vulgaridad­e de um jato comercial? Ou quer impression­ar o imposto de renda inglês (83% são cobrados de gente na faixa de Mick) ou a Justiça, contra sua ex-mulher Bianca Macías, vulgo Jagger, que para se divorciar oficialmen­te dele quer 10 milhões de dólares à vista e 9 mil dólares por semana, valorizand­o assim seus “7 centímetro­s” e vagabundag­em como se fossem um diamante raro?

Em Londres, Mick e eu fomos recebidos por uma massa incalculáv­el no aeroporto de Heathrow. Não eram nossos fãs, não. É o resultado da era do charter, do pacote que permite a todo mundo viajar, ouseja,aqueospobr­esnos inflijam sua incômoda e desagradáv­el presença (há sempre comida pelo chão e crianças berrando). Me senti o “filho de Pinochet” lutando quase uma hora para arranjar carro e chofer que me levassem a Londres.

Às vezes me pergunto se não me tornei um extremista político por motivos estéticos, porque me ofendia a pobreza coletiva. Hoje, que voltei ao natural, não acreditand­o em mais nada, resta o desgosto. Sou um infeliz.

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Mick Jagger em Londres, um dia antes de a “Ilustrada” publicar o texto de Francis, abaixo

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