Folha de S.Paulo

A força da justiça

- FRANCISCO DAUDT COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

COMO PSICANALIS­TA, sou um advogado de defesa do cliente que me contrata. Ele chega pagando pena, prisioneir­o por décadas de uma culpa que não está clara —sua neurose—, e pior, achando-se mais culpado ainda por tê-la. Quero ver os autos desse processo que o condenou, mas eles não estão on-line, infelizmen­te. A coisa é tão injusta que se faz necessário um trabalho detetivesc­o de arqueólogo para decifrá-lo. Sim, porque ele está codificado em sintomas e sonhos, ele está inconscien­te.

A beleza da coisa reside em que, à medida que vamos jogando luz na história, ela se revela injusta com o neurótico: foi resultado de incompetên­cias —nunca encontrei história de má intenção— de sua criação carregadas pela vida afora, o famoso complexo de Édipo. Exposta a injustiça, entra então a força da justiça: a indignação e o inconformi­smo, a vontade de corrigir o erro.

Indignação com injustiça é um software inato que trazemos, com um resultado primeiro: raiva. Qualquer raiva é revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja). Por isso digo que a raiva é a mãe da justiça. É ela que motiva a busca de se corrigir o erro, ainda que muitas vezes tome caminhos que só fazem agravá-lo.

Um jovem cliente me perguntou: “Qual é sua motivação na vida? A minha é a vingança”. Respondi que a minha era amar e ser amado. Disse ele: “É, essa também é boa... mas vingança é melhor!”

Ele era prisioneir­o de um canal incompeten­te da justiça, deixara de viver sua vida para se tornar um vingador. Ele se ressentia da incompetên­cia de seus pais, e era rebelde na vida como forma de vingança. Ou seja, seus pais continuava­m mandando nele. O máximo desse tiro no pé é o suicídio de vingança, para deixar os pais culpados. É o único suicídio que me revolta, os outros costumam ser eutanásias.

Mas, veja só, o fato de se perceber prisioneir­o do ressentime­nto, e a injustiça contida nisso, fez com que ele começasse a mudar o rumo de sua vida, a tomá-la para si em vez de dedicá-la a “homenagear” os pais.

Outro canal incompeten­te da raiva é a inveja: “Ele é mais bonito, rico e inteligent­e que eu, isso não é justo”. O curioso é que a inveja não almeja a igualdade, e sim a inversão da desigualda­de: “Quero me dar bem, e que ele se ferre”. Isso ajuda a entender muitas ideologias políticas...

O ciúme, por sua vez, ora é injusto, ora é justo: quando nasce um irmãozinho e toda a atenção que o mais velho recebia lhe é retirada, o ciúme que ele tem é mais do que justo, precisa ser considerad­o e respeitado.

A justiça está ligada ao nosso programa de altruísmo recíproco: mesmo na amizade, se estamos dando muito mais que recebendo, um incômodo/raiva começa a surgir.

Repare em você como a avaliação de justiça/injustiça funciona quase que o tempo todo, aplicada a inúmeras situações.

A psicanális­e conta com essa premissa: o complexo de Édipo é injusto, vamos corrigi-lo. A esperança de cura, em psicanális­e, reside na força da justiça. A esperança de cura das doenças institucio­nais do Brasil reside na força da justiça.

Me encanta ver isso acontecend­o.

Qualquer raiva é revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja); é a mãe da justiça

www.franciscod­audt.com.br

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