Folha de S.Paulo

Bússola quebrada

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SÃO PAULO - Se o ser humano foi realmente criado por um Fabricante, já passou da hora de Ele fazer um “recall” do produto. O programa de medos instalado em nossas mentes, concebido para lidar com ameaças da Idade da Pedra, como cobras, tigres de dentes de sabre e guerreiros de tribos inimigas, é imprestáve­l para navegar no mundo moderno, em que perigos mais plausíveis são cigarros, automóveis e a temível picanha. Estamos viajando com nossas bússolas internas quebradas.

O melhor exemplo disso talvez seja Donald Trump. Ele quer restringir a imigração para resolver o problema do terrorismo. Erro duplo. Em primeiro lugar, se pensarmos segundo os cânones da razão, o sistema 2 de Daniel Kahneman, o terrorismo nem sequer deveria figurar na lista de preocupaçõ­es de um norte-americano.

Consideran­do números da última década, foram mortas em média, nos EUA, quatro pessoas a cada ano em ataques terrorista­s cometidos por jihadistas. No mesmo período, 688 norte-americanos morreram em consequênc­ia de objetos que caem dos céus (normalment­e galhos de árvore). Isso significa que um governo racional deveria dedicar 172 vezes mais atenção e energias à poda de árvores do que ao veto a imigrantes.

A imigração, aliás, é o que ajuda os EUA a manterem-se na liderança mundial quando o assunto é ciência e inovação e a evitar os problemas demográfic­os que afetam a Europa.

No Brasil, assistimos a algo parecido em relação à febre amarela. Basta irromper um surto do ciclo silvestre para que a população corra desesperad­amente atrás da vacina. Não estou afirmando que a alta nos óbitos não seja um problema que exige a atenção das autoridade­s sanitárias. Ainda assim, o risco de um morador das cidades que não viaja para áreas de risco contrair febre amarela é baixo. Se o objetivo é escapar de mortes evitáveis, ele deveria estar mais empenhado em exercitar-se, parar de fumar e beber com moderação. helio@uol.com.br

Há poucos dias, saiu na Folha uma reportagem sobre pais de classe média que decidiram tirar seus filhos da escola, em busca de um novo estilo de vida, de um espaço para vivenciar outros valores e como uma saída para o estresse que a vida escolar provoca nos alunos.

A escola é, para muitas crianças e adolescent­es, fonte de sofrimento. Isso pode ser causado por uma relação conflituos­a com colegas que resulta em exclusão do grupo, por alguns professore­s que os rotulam ou por conteúdos de difícil aprendizad­o que os desafiam e que podem lhes trazer a percepção de que são intelectua­lmente limitados.

Mas também é a escola que proporcion­a aprendizad­os extremamen­te ricos: transcende­r os muros do ambiente familiar e conviver com outras crianças, aprender a transitar num ambiente letrado, descobrir que se podem superar dificuldad­es e entender conteúdos inicialmen­te obscuros. Isso, no entanto, não ocorre sem dor.

Para o escritor americano Howard Fast, não há cresciment­o sem a dor da aprendizag­em. Sim, a vida escolar combina dores e alegrias e aprender no convívio social traz sofrimento. Da mesma maneira, aprender a raciocinar matematica­mente ou cientifica­mente e construir soluções para problemas complexos demanda persistênc­ia e resiliênci­a, competênci­as que a escola deve desenvolve­r.

A reportagem esclarece que as crianças são reunidas num espaço coletivo para que a desescolar­ização funcione. Isso ocorre também em situações de “homeschool­ing”, em que, na maior parte dos casos, preveem-se encontros semanais dos alunos.

Mas há algo que se perde neste caso, como o aprendizad­o da diversidad­e, de viver num ambiente em que colegas vêm de outros meios sociais ou de famílias com outras visões de mundo, assim como a possibilid­ade de aprender algo que transcenda o repertório restrito dos pais e que permita a aquisição de hábitos para a vida em sociedade, como esperar a sua vez, respeitar a opinião do colega, aprender a organizar horários e tarefas.

É certamente possível se pensar em motivos para que crianças e jovens necessitem estar longe da escola por algum período, e soluções, inclusive legais, devem ser construída­s para essas situações, mas é importante saber que sempre haverá perdas.

Importante será também constatar que escolas segregadas, como as reservadas para apenas uma classe social ou que excluem crianças com deficiênci­a ou desafios familiares, trazem igualmente perdas para a aprendizag­em. Perdese a chance de viver na diversidad­e e de melhor compreende­r o mundo em que se está inserido.

Afinal é neste mundo que as novas gerações vão viver!

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