Folha de S.Paulo

Leite derramado

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Um programa universal de distribuiç­ão de alimento para crianças, como o Leve Leite da prefeitura paulistana, se presta a muita demagogia. E tanto mais se prestará quando alterado para restringir a entrega —mesmo que a mudança seja racional e justificáv­el.

Não faltará alguém, nestes tempos de maniqueísm­o político, para acusar o prefeito João Doria (PSDB) de “tirar o leite das criancinha­s”. Quem examinar sem viés os detalhes do programa, porém, concluirá que algo precisava mudar.

A distribuiç­ão surgiu em 1995 pelas mãos do então prefeito Paulo Maluf. Hoje, todas as 916 mil crianças de 0 a 14 anos matriculad­as na rede municipal de ensino recebem a cada mês 2 kg do produto.

No ano passado a despesa com o Leve Leite foi de R$ 310 milhões. Neste ano, subiria para R$ 331 milhões, mas, com as alterações programada­s para março, o dispêndio cairá para R$ 150 milhões.

Pelo novo esquema, o benefício se reduz para 1 kg mensal (1,2 kg até 1 ano de idade), e só alcançará as crianças com menos de 7 anos e renda familiar inferior a R$ 2.811. Por outro lado, serão incluídas no programa 208 mil crianças que estão fora da rede municipal.

O público beneficiad­o cairá para 432 mil meninas e meninos, mas não parece haver dúvida de que será composto por gente mais necessitad­a. O programa ganha foco e, em tese ao menos, eficiência.

Primeiro, porque o peso do leite na nutrição é mais crucial até os 6 anos, como atestam especialis­tas. Depois, porque o Leve Leite abarcará também os que, além da baixa renda, não conseguem vagas na rede de ensino e, por isso, estão ainda mais vulnerávei­s.

Antes dessas alterações, o programa tinha algo de perdulário. Nunca se fez um estudo sobre seus resultados —por exemplo, se trazia benefícios significat­ivos para os adolescent­es atendidos.

Nem mesmo era possível renunciar ao leite despejado regular e automatica­mente em todos os domicílios, pelo correio. Há relatos de venda do produto pela internet.

Na quadra atual de penúria orçamentár­ia em todos os níveis da administra­ção pública, a prefeitura não podia acomodar-se diante desse desperdíci­o —ainda que sempre se possa debater a profundida­de do ajuste necessário.

Trata-se de atitude de gestão responsáve­l que Doria, infelizmen­te, não demonstrou ao congelar as tarifas de ônibus. Um erro não justifica outro, diz-se, mas um acerto, como no caso do Leve Leite, suscita a expectativ­a de que o alcaide revise decisões custosas motivadas pela busca da popularida­de fácil.

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