Folha de S.Paulo

Deus abençoe

- TATI BERNARDI COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

VOCÊ QUE acorda cedo pra pular Carnaval. Que vai tarde adentro, noite afora. Que espera ansioso para camelar ao sol e ao som de batuques. E no calor e no meio de tanta gente. Que vai da Paulista até a Roosevelt. Que compra parafernál­ias penosas vibrantes quentes pesadas. Que não mancha com raios UVA e UVB, não tem medo do buço escurecer sem filtro e não protege todas as pintas sinistras das costas com bloqueador. Que bebe e se chacoalha e bebe mais e não vomita nem desmaia com a pressão cinco por dois e tampouco morre. Que pisou em 34 tipos diferentes de urina e nem vai lembrar disso quando entrar em casa com os sapatos. Que tem 78 tipos diferentes de suores brigando por destaque em seus abraços. Que achou graça nas lantejoula­s no pinto, parecia que ele tinha olhos. Que senta em privadas de botecos e encosta sem querer a calcinha no vaso e não tem nenhum medo de ebola vaginal assassino.

Deus abençoe você que não tem nenhum remédio controlado no cerebelo. Que goza rápido. Que olha um mar de gente a sua frente, ao lado, pra trás, e não tem a voz na cabeça dizendo “deu merda”, “cadê a saída”, “deu merda cadê a saída dessa porra?”. Que não se imagina pisoteada por foliões e a manchete no dia seguinte “a felicidade alheia lhe esmagou o triste crânio”. Deus abençoe seu espírito livre, seus ossos de aço, suas artérias não hipotensas, sua testa não amarrotada por medos.

Deus abençoe você que realmente junta a turma, que tem saco pra gostar de tantos e ao mesmo tempo (e mais os amigos dos amigos que nunca param de chegar). Que sacoleja o bebê no colo, encontra seu ex fantasiado de Beyoncé grávida (no caso dele, de cerveja) e pensa “que sexy!”. Deus abençoe você que flerta com desconheci­dos e não com a hipoglicem­ia.

Na manhã de meu aniversári­o de 35 anos, acordei com dengue. Fui para o hospital, fiz vários exames, não era dengue. Doía a lombar, a cervical, os joelhos. Os olhos ardiam, a garganta raspava, a coluna queria desistir de tudo por horas. Era rim ou mau jeito? Enxaquecas, gastrites, arritmias. Tantos médicos e a mesma sentença: não é nada. Deus abençoe você que não se sente com uma dengue eterna desde que fez 35 anos.

Você que ressignifi­ca o espaço urbano, que reocupa a cidade, você que adora ser o sujeito dessas frases apesar de ter apenas mijado em frente a uma papelaria. Como você leva a sério a sua leveza! Ergue as mãos ao céu, glorifican­do o lixo abandonado no Centro, as carcaças de gatos mortos, as calças de palhaço mofadas. O mendigão te odeia, mas você, tão do povo, o chama pra dançar. Sim, sua família é aquela desgraça. Tem suicida, louco, vagabundo, racista. Sim, seus amigos, outra maravilha. Tem invejoso, fascista, machista, mentiroso. Mas taí uma coisa que nunca te derrubou: a angústia. O pavor de saber, lá no fundo, que na real (e de forma bem escancarad­a quando não distraído) tá tudo errado.

Deu onda. Meu pau te ama é a mais bonita frase já inventada. Teve Carnaval aqui na minha rua, você diz. Ejacularam e cagaram na sua porta. Você amou, você é feliz, você é do bem, você fez letras, você usa anel no dedo do pé e saia da vovó. No dia seguinte não lavaram a rua. Daí veio o dia da feira e a soma da fedentina chegou na vizinhança. Você nem sentiu. Você postou foto do seu pé (o mesmo que tem anel) estraçalha­do por um caco pontudo. O vidro perfurou sua rasteirinh­a. Mas ano que vem, se Deus quiser, tem mais! HPV se cura com meditação, vontade de sumir, com florais. Ser você é uma dádiva. Deus te abençoe.

Seu espírito livre, seus ossos de aço, suas artérias não hipotensas, sua testa não amarrotada por medos

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