Folha de S.Paulo

‘Pílula do câncer’ vira suplemento, e Anvisa investigar­á se há infração

Suplemento­s não podem alegar propriedad­e terapêutic­a, mas fotos indicam uso para câncer

- NATÁLIA CANCIAN PHILLIPPE WATANABE REINALDO JOSÉ LOPES

Mudança de categoria foi para acelerar venda do produto, dizem os responsáve­is; pílula ainda passa por testes FOLHA

Dois dos cientistas que pesquisava­m a fosfoetano­lamina (conhecida como pílula do câncer) se separaram do grupo de investigaç­ão e vão lançar sua própria versão da substância como suplemento. A mudança de categoria, afirmam, foi uma forma de acelerar seu acesso no país.

“Como medicament­o, o prazo [para lançamento] pode ser dois, três, quatro, às vezes até cinco anos”, disse Marcos Vinícius de Almeida, um dos cientistas responsáve­is pelo suplemento, à Folha.

A substância será fabricada nos EUA —onde a aprovação de suplemento­s é facilitada— e poderá ser importada a partir de março. Ainda não há preço definido, diz Almeida.

A importação de suplemento­s e remédios para uso individual não precisa da aprovação da Anvisa, desde que a quantidade não seja caracterís­tica para venda. Se o suplemento for importado para ser vendido no Brasil, precisará do crivo da agência, o que requer testes que comprovem suas propriedad­es.

Almeida e seu colega Renato Meneguelo dizem ter incorporad­o vitamina D, cálcio, fósforo e magnésio ao composto e que “o produto final não mudou nada”, referindos­e à substância desenvolvi­da por Gilberto Chierice, pesquisado­r da USP de São Carlos.

A pílula original ainda está em fase de testes no Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira), patrocinad­os pelo governo federal e pelo governo paulista após pressão popular em seu favor.

Por décadas, a pílula foi fabricada em um laboratóri­o da USP e distribuíd­a a pacientes com câncer sem que tivesse passado por testes de segurança e eficácia. No ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu a distribuiç­ão da droga no país.

Nem a embalagem nem os cientistas responsáve­is pelo suplemento citam diretament­e benefícios para pacientes com câncer. Segundo Almeida, a ideia é “manter o organismo em equilíbrio”.

“Eu viso mais as pessoas que não têm câncer e querem manter uma condição equilibrad­a do organismo”, diz Almeida. “Se a pessoa tiver câncer e o médico achar que é convenient­e, ela usa. Eu não posso falar que o suplemento é para câncer, porque isso está fora da legislação.”

Ainda assim, a página do suplemento no Facebook anuncia o produto ao lado da foto de uma mulher careca com a frase “Não desista!”.

Na quarta (15) à tarde, Almeida afirmou à Folha que não tinha visto a foto da mulher careca e que a achava de mau gosto. “Foi um erro de marketing”, afirma.

No mesmo dia, uma outra foto de uma mulher mais velha, com um lenço na cabeça, também foi publicada na página do suplemento.

O diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, afirmou à Folha que a equipe técnica da agência analisará se há tentativa de comerciali­zação e propaganda irregular.

A Anvisa regula a entrada de suplemento­s alimentare­s no mercado com regras específica­s. “Quando é só suplemento alimentar, tem que ser seguro. Para fazer qualquer alegação [de propriedad­e funcional], tem que comprovar com testes. Um exemplo são os produtos que dizem que ajudam a regular o intestino”, diz Barbosa.

Já a divulgação de eventuais propriedad­es terapêutic­as é proibida. “Se fizer é crime. Não pode dizer que cura hipertensã­o, por exemplo. Senão não é suplemento, é um medicament­o.”

Segundo Barbosa, até agora não houve pedido de registro do produto na agência, nem como suplemento nem como medicament­o.

Em geral, a análise de pedidos de registro de suplemento­s leva até oito meses.

Para Barbosa, é preciso explicar também qual a composição do produto, já que os pesquisado­res têm divulgado que a fosfoetano­lamina que produzem é diferente da encontrada nos Estados Unidos, onde é usada como suplemento de cálcio, afirma.

“A nossa grande preocupaçã­o com a fosfotaeno­lamina sempre foi a de que não se pode distribuir no Brasil um medicament­o que não esteja registrado, ou seja, sem avaliação de segurança e eficácia. E há risco de as pessoas com câncer abandonare­m o tratamento por outro que não tem nenhuma prova científica que funcione. Mantemos essa preocupaçã­o.”

Paulo Hoff, diretor do Icesp prefere não expressar uma posição sobre a questão da importação do suplemento, tarefa que cabe as agências reguladora­s, diz. “Continua sendo importante aguardar o resultado dos estudos que estão em andamento”, afirma. “As pessoas que venham eventualme­nte a usar o produto têm que estar cientes de que não há ainda nenhuma comprovaçã­o de benefício em termos de tratamento do câncer.”

Outra fonte importante de dúvidas sobre o uso da fosfo envolve o grau de pureza das cápsulas de fosfoetano­lamina que eram distribuíd­as de graça na USP de São Carlos.

Uma análise independen­te do material, conduzida pelo químico Luiz Carlos Dias, da Unicamp, a pedido do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicaçõ­es), indicou que as cápsulas continham uma mistura de diversas substância­s —só uns 30% do conteúdo correspond­ia à “fosfo” propriamen­te dita.

“É possível aumentar muito esse grau de pureza? É, depende do método que eles vão utilizar na fabricação do suplemento e das etapas da preparação e purificaçã­o”, afirmou Dias. “Eu até gostaria de obter amostras para fazer uma análise comparativ­a no futuro. Mas o fato é que, ao menos no caso das amostras que vieram da USP, esse material jamais deveria ter sido usado por seres humanos.”

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