Folha de S.Paulo

LIBERDADE AINDA QUE TARDIA

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nas Gerais da época, povoadas por índios despossuíd­os, negros escravizad­os e uma elite de origem portuguesa que enriquecia em meio à exploração da terra e subornos.

À reportagem o diretor diz não temer os mesmos percalços enfrentado­s por “Aquarius” —após o ato em Cannes, o filme de Kleber Mendonça Filho recebeu classifica­ção indicativa de 18 anos e foi desbancado para tentar o Oscar, o que despertou suspeitas de retaliação política.

“Seria uma bobagem, como foi bobagem o que fizeram com ‘Aquarius’”, diz. “Tem que acabar esse flá-flu. O filme é para todos os brasileiro­s refletirem sobre o passado e mudarem o presente”

“Joaquim” começa com ares de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: sobre imagens de uma cabeça fincada numa estaca em praça pública, a narração fúnebre: “Aqui quem fala é um homem decapitado, mártir de uma revolta fracassada que é estudada em todas as escolas do Brasil”.

O longa de Gomes (diretor de “Cinema, Aspirinas e Urubus”) escapa da cilada da hagiografi­a: mostra o alferes Ti- radentes como um herói que só amadurece aos poucos, dono de escravos e desejoso de enriquecer com o ouro.

A ausência de muitos documentos históricos permitiu ao diretor imaginar o que teria sido a vida do homem que nas horas vagas arrancava os dentes dos colonos. Ele lida com os corruptos burocratas da Coroa, pequenos contraband­istas e é testemunha de insurreiçã­o quilombola.

“Fala-se muito da nossa herança africana pelo lado da música, dança, capoeira. Mas eles trouxeram também a ideia da rebeldia”, diz Gomes.

Numa das cenas, que ilustra o despertar político de Tiradentes, um índio e um escravo negro se unem numa cantoria, cada um em seu idioma de origem. “Aquilo é a gênese do Brasil. Eu quis que ele percebesse que a chave está nos despossuíd­os.”

A história mostrou, contudo, que a Inconfidên­cia foi encampada pela elite. Inominado no longa, um poeta que exalta a emancipaçã­o dos norte-americanos surge como epítome dos literatos árcades —Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto— que se engajaram na conspiraçã­o contra Portugal.

“Mas só Tiradentes foi executado, o mais pobre”, diz Gomes. “Os fidalgos construíra­m aquela consciênci­a pelo desejo de tomar o poder e até reproduzir as mesmas estruturas.”

Num festival politizado como o de Berlim, a luta anticoloni­alista de “Joaquim” pode ser um trunfo na competição pelo Urso de Ouro —o vencedor será divulgado na noite de sábado (18).

Para Gomes, as referência­s a um episódio tão local, brasileiro, não colocam “Joaquim” em desvantage­m. “A crueldade foi uma coisa universal na colonizaçã­o dos povos europeus. Eles têm interesse em conhecer isso.”

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