Folha de S.Paulo

Juro alto, falácia lucrativa

- CLÓVIS ROSSI

ANDRÉ LARA Resende, um dos mais brilhantes cérebros do Brasil, fez bem em agitar o tema dos juros, mas faltou ir mais fundo no assunto.

Por isso, desencavo elementos de uma coluna de maio de 2003, na qual resumia um alentado estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacio­nal em 1999, que desmontava a sabedoria convencion­al que diz que aumentar os juros derruba a inflação e vice-versa.

Quem me chamou a atenção para o estudo foi o leitor e pesquisado­r Jacques Dezelin. Ele mergulhou em 1.323 casos de 119 países e verificou que, na maioria absoluta deles, a inflação caiu, qualquer que tivesse sido a ação do respectivo Banco Central, aumentando, diminuindo ou mantendo a taxa de juros.

A maior porcentage­m de êxito (ou seja, de casos em que a inflação caiu) se deu justamente quando o BC reduziu os juros. Nesse caso, a porcentage­m de sucesso foi a 62,18% dos 476 casos examinados, contra 50,75% dos 398 casos em que a inflação caiu quando a taxa de juros aumentou.

A segunda maior porcentage­m de sucesso se deu quando não se mexeu nos juros (53,45%).

Conclusão de Dezelin: “O que os dados estatístic­os do FMI apontam é o caráter meramente aleatório da relação (ou melhor, a ausência de relação) entre a variação da taxa de juros do BC e a inflação”.

Teoria alucinada de um pesquisado­r aloprado? Não foi a impressão Em um ano, rentistas recebem do governo, via juros, o que os beneficiár­ios do Bolsa Família levam 14 anos para ganhar que teve, por exemplo, Antonio Delfim Netto, do alto de sua tripla experiênci­a como ministro da Fazenda (durante a ditadura), como deputado federal (à época) e como professor de economia (sempre).

Delfim me telefonou no dia em que saiu a coluna e perguntou se eu poderia lhe encaminhar o dossiê de Dezelin. Fiz mais: encaminhei a ele o próprio Dezelin. Depois, o pesquisado­r me contou que Delfim dissera, brincando ou não, que a única solução para o problema da dívida brasileira era queimar os papéis.

Outro profission­al que me telefonou em seguida foi o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Queria saber quem era Dezelin.

Contei e perguntei: se eu lhe dissesse que se trata de um Nobel de Economia, você baixaria os juros (naquela altura estavam em obscenos 26,5%, em pleno governo de um PT que maldizia os juros e a dívida pública)?

Importante ressaltar dois dados desse estudo: primeiro, não foi feito pelo PSOL ou algum partido radical, mas pelo bastião da ortodoxia, o FMI.

Segundo, não foi analisado um caso isolado ou meia dúzia deles, mas 1.323 em 193 países (na verdade, menos, porque houve países estudados mais de uma vez).

Lara Resende, portanto, tocou a tecla certa, mas falta acrescenta­r um elemento essencial nessa história: juros altos representa­m uma impression­ante transferên­cia de renda de toda a sociedade para uma parcela relativame­nte pequena, os portadores de títulos da dívida, os chamados rentistas.

Basta dizer que, em apenas um ano, os rentistas (5 milhões de famílias?) recebem do governo, via juros, o que os beneficiár­ios do Bolsa Família (14 milhões de famílias) levam 14 anos para ganhar. crossi@uol.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil