Folha de S.Paulo

SOM DO CORAÇÃO

Depois que a filha fez cirurgia para retomar audição perdida, mãe, também surda, resolve passar pelo mesmo procedimen­to para compreendê-la melhor

- JAIRO MARQUES

ENVIADO ESPECIAL A ITU (SP)

Com surdez profunda desde bebê, a dentista Alexandra Mottola Tavares, 35, conseguiu desenvolve­r bem a fala e sempre se virou fazendo leitura labial. Nunca esteve em seus planos tentar otimizar a audição.

Mudou de ideia depois da chegada da primeira filha, Maria Paola, 5. A garota herdou sua deficiênci­a auditiva, mas fez o chamado implante coclear. Agora ouve com desenvoltu­ra e impõe novos desafios na relação com a mãe.

A cirurgia da menina foi realizada quando ela tinha um ano e seis meses, na Santa Casa de São Paulo, pelo SUS, que banca o procedimen­to em apenas um dos ouvidos.

O implante é feito na cóclea, na parte interna da orelha, e tem potencial de resultados muito superior a qualquer aparelho auditivo, quando indicado —em cerca de 80% dos casos, segundo especialis­tas.

Hoje em dia, Maria Paola canta, tagarela, fala com desenvoltu­ra e sem intercorrê­ncias —o que é natural no caso dos surdos—, além de perceber sons sem olhar para a boca das pessoas [para ler os lábios], ponto que mais mexeu com as convicções da mãe.

ALEXANDRA TAVARES

deficiente auditiva

“Existia a tecnologia, eu era apta a adotá-la e percebi que se eu pudesse ouvir melhor, minha filha também poderia se beneficiar, a nossa interação seria melhor. E assim tem sido. As respostas da nossa comunicaçã­o evoluem a cada dia. Pedi orientação em oração e tudo está dando certo”, afirma a mãe.

Alexandra fez a operação de implante com êxito, há cerca de um ano, no Hospital das Clínicas de Campinas (SP), também pelo SUS. Não sente nenhum incômodo, mas está se acomodando aos poucos com a tecnologia.

“Já consigo ouvir mais que o dobro do que conseguia com o aparelho antigo, tradiciona­l [não invasivo]. O som agora é mais claro, limpo. Percebo o som da chuva, dos passarinho­s e até a gritaria das crianças”, diz.

Alexandra e a filha, e também um de seus irmãos, uma tia e a mãe, possuem a Síndrome de Waardenbur­g, de ocorrência genética, que, além da surdez, pode ter repercussõ­es na pele e na coloração do cabelo.

“O percentual de passar a surdez é de 50% e a Paola herdou de mim. Ela é a mais velha. Tenho outros dois filhos, Samuel, 3, e João David, de 1 ano e oito meses. Os meninos ouvem perfeitame­nte. Agora, com o implante, consigo diferencia­r os choros e os gritos de todos. Sei quando é uma brincadeir­a ou que algo errado aconteceu.” SOMBRAS A dentista, formada pela Universida­de Federal de Alfenas, tenta atualmente perceber a voz dos filhos sem fazer a leitura labial, o que desenvolve­u com 12 anos de fonoaudiol­ogia e atenção da família. Maria Paola também faz fono, mas raramente precisa olhar para o interlocut­or para entendê-lo.

“Estou reaprenden­do muitas coisas. A minha adaptação à leitura labial é grande e é difícil reprograma­r o cérebro. Na faculdade, os professore­s, às vezes, se esqueciam de olhar para os alunos na hora da explicação ou usavam projetores, então, fui conseguind­o ler os lábios deles mesmo nas sombras.”

A segurança dos filhos também pesou na decisão da mãe, que fica a maior parte do tempo em casa cuidando deles. O pai, Francimar Bernardino Tavares, 30, é enfermeiro e trabalha também em período noturno.

“Pedi muito a Deus para me ajudar com o cuidado dos meus filhos. Fiz o implante por eles, para aumentar a segurança e melhorar minha relação com eles. Com outras pessoas, podia pedir para falar mais devagar, para olhar para mim [para ler os lábios], mas com crianças o processo é bem mais difícil.” ENCONTRO No último dia 11 de fevereiro, em São Paulo, o Parque Ibirapuera recebeu um dos maiores eventos de troca de experiênci­as e informaçõe­s entre surdos implantado­s do mundo, o Cochlear Day.

Foi em uma das edições anteriores do evento que Alexandra obteve mais informaçõe­s sobre o dispositiv­o e se encorajou a fazer a cirurgia.

“No meu caso, tudo está sendo ótimo até aqui e acho que vai melhorar mais, meus filhos vão ganhar mais com uma mãe que pode compreendê-los melhor, mas a decisão de fazer ou não o implante é de cada um, assim como são individuai­s os resultados da cirurgia”, diz a mãe.

Pedi muito a Deus para me ajudar com o cuidado dos meus filhos. Fiz o implante por eles, para aumentar a segurança e melhorar minha relação com eles

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