Folha de S.Paulo

MINHA HISTÓRIA DE MENINA A MENINO

Flautista conta a história do filho que nasceu Olívia e hoje se chama Oliver; luto e brigas com a família e a escola vieram antes da aceitação

- CHICO FELITTI

FOLHA

Em 2009, eu fiquei grávida. Em outubro, tive uma menina, para quem demos o nome de Olívia, em homenagem à avó paterna dela, que tinha morrido de câncer.

A Olívia sempre foi uma criança bondosa, sensível, mas nunca teve jeitinho de princesa. Tenho outra menina, de três anos e 11 meses, que sempre foi muito princesinh­a. Mas eu mesma nunca fui menininha, usava calça de skatista, camiseta folgada, então achava o Oliver uma menina normal.

As brincadeir­as eram sempre de dinossauro, carrinho, jogos eletrônico­s, Pokémon. Aí chegou uma época, quando ele tinha quatro anos e meio, que comecei a sentir uma coisa diferente. Ele se sentava na cama e dizia: “Olha só, mamãe, eu sou menino, sou um herói”. E eu dizia: “O que é isso, menina? De onde você tirou isso?”

O pai dele sempre foi muito fechado, filho de policial. Eu percebi que isso estava fazendo mal para o Oliver. Quando ele tinha cinco anos, gravei um vídeo em que eu perguntava para ele: “O que você é?”, e ele respondia “Eu sou menino”. Levei ele para cortar cabelo bem curto.

Comecei a comprar camisetas de dinossauro­s, mas ele continuava usando a parte de baixo do departamen­to feminino. Até que um dia, meses depois, eu comprei um sapato masculino para ele usar numa festa na casa da família do pai. Me chamaram de louca, quiseram me bater. Me acusaram de querer ter um casal e por isso estava influencia­ndo a criança. Jamais! Eu amo menina, queria ser mãe de menina desde o primeiro momento que olhei para a Olivia. Jurei que nunca mais iria na casa da família do pai dele, por mais que a gente ainda seja muito amigos, mesmo separados.

Com cinco anos, prometi para ele que nunca mais ele teria de usar roupa de menina. Ainda assim o estojo dele era rosa, os lápis eram rosa. Ele mastigava os lápis até que saísse a tinta rosa. Postei no Facebook um vídeo de ele ganhando as primeiras roupas de menino, e ficando emocionado. Meu pai falou: “Você tem que tirar isso agora ou vai ser presa! Isso é um absurdo!”.

No começo, eu fingi que aceitei numa boa. Fingi porque é muito difícil. Eu não queria que ele visse que eu estava triste. Tinha medo de fechá-lo para o mundo. Ele me implorou, me pediu, vi que não tinha mais saída. Eu entrei em luto em 2015, quando percebi que estava perdendo minha menininha. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha que salvar o meu menino que estava surgindo. Eu sempre pensava que se ele sofresse muito bullying, poderia ficar traumatiza­do.

Trocamos o estojo por um do Homem-Aranha, mas não bastou. Ele estuda numa escola muito tradiciona­l, onde eu também estudei, patrocinad­a por um banco. Chegou um momento em que ele falava abertament­e: “Sou menino”, mas as professora­s não levavam a sério. Não podia usar o banheiro de menino. Ele começou a ficar rebelde. Cortou o cabelo na frente da classe, jogou guache.

Eu nem sabia o que era transgêner­o. Sabia de lésbica, gay e era isso. Descobri na internet que havia um centro de transgêner­o no Instituto de Psiquiatri­a do Hospital das Clínicas da USP.

Em dezembro de 2014, liguei lá e consegui uma consulta para três meses depois. O Oliver foi e, na frente de 20 pessoas, fez a triagem. Eu tive de explicar, porque ele ficou tímido. Ele continuou vendo a psicóloga do núcleo, uma vez a cada 20 dias. Fez no finalzinho do ano exames para ver se a puberdade está chegando, porque vamos bloquear a puberdade para evitar os primeiros sinais de desenvolvi­mento feminino, a menstruaçã­o, os peitinhos.

Depois, a partir dos 14 anos, se ele quiser, pode-se começar a usar hormônios masculinos. Percebo que há essa cultura no Brasil de que é a mãe que cuida do que a criança vai sentir. Não respeitam a vontade da criança.

Teve um episódio que me ajudou a lidar com isso. Em 2013, quando a irmã do Oliver tinha dois meses de vida, ela pegou H1N1, gripe suína. Ela ficou dois meses na UTI, quase perdi minha menina. Quando ela não morreu, eu fiz um combinado com Deus e com Santa Cecília: se ela vivesse, eu a batizaria de Cecília e aceitaria que meus filhos não são só meus, são do mundo.

Isso me ajudou a superar a questão do Oliver. Hoje eu vejo: o que é ser transgêner­o perto de uma menina que quase perdeu a vida?

A gente morava com a minha mãe até setembro de 2016. O Oliver ia para a escola sozinho. Os amiguinhos do prédio eram extremamen­te preconceit­uosos. Quando viram a mudança dele, diziam “Cala a boca, você é menina!”. Ele não queria mais descer para brincar. Os próprios porteiros se recusavam a chamá-lo de Oliver.

Mudamos de casa, e eu nunca vi tanta criança dentro de casa. No final de 2016, a coordenado­ra permitiu que ele usasse o banheiro masculino. São pequenas vitórias. Ele está muito feliz.

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