Folha de S.Paulo

A corrida do ouro no Peru

Um eldorado andino infenso a forasteiro­s

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RESUMO nas. E motos, muitas motos.

La Pampa é um subproduto da Estrada do Pacífico, uma rodovia que começa na cidade acreana de Assis Brasil, fronteira Brasil-Peru, e segue até Inambari, no pé dos Andes, onde se bifurca: um trecho sobe a cordilheir­a até a mítica cidade de Cuzco, capital dos incas, até terminar na costa do Pacífico. Outro ruma ao sul, em direção ao lago Titicaca, sagrado para diversos povos pré-colombiano­s. No total, 2.400 km de asfalto, o equivalent­e à distância em linha reta entre São Paulo e Natal.

Grande parte da obra foi feita por empreiteir­as brasileira­s, que se tornariam, alguns anos mais tarde, protagonis­tas da Operação Lava Jato, que investiga um gigantesco esquema de fraude em obras da Petrobras. Também no Peru essas construtor­as foram acusadas de subornar políticos e apresentar aditivos suspeitos de contratos para construir a rodovia. O orçamento inicial, de US$ 800 milhões no início das obras, em 2005, pulou para mais de US$ 2 bilhões no seu término, em 2010.

Antes da Estrada do Pacífico, chegar a La Pampa não era para os fracos. A estrada de terra esburacada, de acesso quase impossível na época das chuvas, era um teste para os aventureir­os que para ali se deslocavam em busca do ouro, que é considerad­o superpuro. Em pequenas lojas ao redor do mercado de Puerto Maldonado, frequentem­ente recebe a classifica­ção “ley 99”, o que significa 99 de partes de ouro em 100 presentes numa pepita (o restante são fragmentos de outros tipos de metal). Normalment­e, ouro acima de “ley 80” (80% de pureza, portanto) já é considerad­o um bom investimen­to.

Quando a estrada chegou, gerou uma corrida ao metal. Peruanos, bolivianos e brasileiro­s literalmen­te amontoaram-se em La Pampa. A região virou um caos.

Foi com esse pensamento a perturbar minha mente que tomei a estrada em uma manhã de junho de 2015, num velho Toyota azul alugado, dividido entre a prudência que me recomendav­a simplesmen­te passar reto e seguir viagem e a curiosidad­e que me atiçava a estacionar o carro, dar uma perambulad­a por La Pampa e seja o que Deus quiser. Eu partira de Puerto Maldonado cedinho, tomando a estrada rumo ao oeste, e no meio do trajeto de cerca de 250 km havia a difícil decisão de dar uma espiada em La Pampa.

Em dezenas de viagens que fiz por países de África, América Latina e Oriente Médio, acostumeim­e a aceitar que muita coisa dá errado: ônibus não saem no horário, fronteiras se fecham, burocratas dificultam a vida do viajante, formulário­s imprevisto­s são exigidos, pequenos golpes são aplicados. Mas, de vez em quando, as coisas dão certo, e muito certo. Foi o que aconteceu naquele dia.

Na estrada, ultrapasse­i um ônibus, sem imaginar que aquilo me faria ganhar o dia. Era um destacamen­to da Polícia Nacional peruana, dirigindo-se a La Pampa para se juntar a outros contingent­es que lá estavam para uma inspeção. Não acreditei na minha sorte quando, ao avistar as primeiras barracas de lona azul e palafitas de La Pampa, pude ver dezenas de policiais enfileirad­os, armados com fuzis e escudos, prontos para iniciar a batida. Subitament­e, o local estava seguro para um forasteiro como eu dar uma circulada.

Parei o carro numa quebrada de chão batido que sai da estrada, catei meu bloquinho e minha câmera (sem medo algum) e fui ser feliz.

As operações policiais, explicou-me um capitão que não se identifico­u, eram comuns. “Estamos em busca de armas, drogas e garimpeiro­s sem autorizaçã­o para buscar ouro, que são a maioria”, disse-me ele. A maioria das “minerías” fica a uma ou duas horas de caminhada mata adentro, a partir de La Pampa. Os garimpeiro­s vão de motoca, carregando mangueiras, motores para revolver a lama e tonéis de mercúrio, necessário para separar o ouro da terra. Saem de manhã e retornam no fim do dia, para dormir e gastar parte do que garimparam nos bares e prostíbulo­s do local.

Na manhã da minha visita, o Hotel Norteño, um dos mais requisitad­os do pedaço, estava movimentad­o. Chamar de “hotel” uma grande estrutura retangular, com chão de madeira suspenso sobre palafitas e duas dezenas de cubículos com espaço para uma cama de solteiro requer algum esforço, mas, para garimpeiro­s fissurados em fazer fortuna, nada disso importava. A 15 soles a noite (algo como R$ 15, na cotação de 2016), o Norteño estava lotado. Na “recepção” (uma cabine logo na entrada), havia todos os avisos típicos de um hotel de verdade: “checkin às 13h”; “não nos responsabi­lizamos por pertences deixados no quarto”; “alugam-se toalhas”; “ao sair, deixe a chave na recepção”. Ao lado, um homem consertava um cano que levava água para os chuveiros coletivos —quando o cano se partiu, uma torrente de água de procedênci­a duvidosa inundou por alguns segundos o local, até que o rapaz conseguiss­e fazer um remendo emergencia­l. Dois homens chegavam de Lima para trabalhar, mas esquivaram-se de minha investida, com cara de poucos amigos. No Norteño, ninguém queria falar. Mesmo com tanta polícia do lado de fora, percebi rápido que minha presença ali não agradava a ninguém. Voltei para o carro e segui viagem.

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