Folha de S.Paulo

Estado inconstitu­cional

- RONALDO CAIADO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Ronaldo Caiado; domingo:

O ESTADO, sem dúvida, é o grande vilão da crise brasileira. Mais que isso, é a própria crise. O descrédito que a sociedade, em seu conjunto, devota hoje aos três Poderes, dificultan­do (quando não impedindo) a governabil­idade, deriva, em síntese, de um sistemátic­o descumprim­ento contratual. O Estado não cumpre o seu papel.

O contribuin­te arca com uma das mais altas taxas tributária­s do planeta e tem como retorno (quando tem) serviços que muito raramente merecem tal qualificat­ivo. Trata-se, pois, de um calote à cidadania. Os setores essenciais — saúde, segurança e educação— estão claramente degradados.

Basta ir a um hospital público, qualquer um, para ver pacientes agonizando e morrendo nos corredores. Faltam médicos, enfermeiro­s, equipament­os básicos, condições sanitárias mínimas.

A segurança pública mostrou há poucos dias em que estágio está. Uma greve da PM no Espírito Santo produziu, em quatro dias, 161 mortos. Os índices anuais de homicídio ultrapassa­m 60 mil.

O contraband­o de armas tornouse um dos mais prósperos negócios, facilitado pelas imensas fronteiras porosas, que favorecem a ação do crime organizado. Em decorrênci­a, o país deixou há muito de ser apenas corredor de exportação de drogas para tornar-se o segundo consumidor mundial de cocaína e o primeiro de crack.

O Estado, nos termos da Constituiç­ão, é o responsáve­l pela ineficácia de tais serviços, que são de sua alçada exclusiva. A degradação é geral, mas, para espanto da sociedade, a Justiça decidiu enquadrálo não em relação a quem o sustenta —o cidadão-contribuin­te—, mas exatamente em relação a quem contribui para tornar esse ambiente ainda mais irrespiráv­el: o bandido.

Refiro-me à recente decisão do STF de obrigar o Estado de Mato Grosso do Sul a indenizar um presidiári­o, que pediu reparação pecuniária por danos morais em decorrênci­a do tratamento degradante que recebeu no cumpriment­o da pena.

Trata-se de alguém que cometeu crime de latrocínio —assalto seguido de morte. O STF entendeu que o Estado, ao não garantir a integridad­e do preso, descumpriu a Constituiç­ão. De fato, mas o que se pergunta é: e os demais descumprim­entos?

O cidadão assassinad­o por aquele presidiári­o, assim como milhares de outros, tinha também direito à segurança, que o Estado não lhe proveu. Sua família será indenizada? E ainda: ao dar repercussã­o geral a essa decisão, o STF abre as portas para que toda a população carcerária do país, que vive nas mesmas condições —cerca de 700 mil presos—, requeira o mesmo direito.

Num cálculo aproximado, a despesa, mantido aquele valor, que pode ser aumentada de acordo com o critério de cada juiz, seria em torno de R$ 1,4 bilhão. No Amazonas, a Justiça mandou indenizar em R$ 60 mil as famílias dos mortos em confronto entre facções criminosas dentro do presídio.

Além dos danos ao teto dos gastos públicos, a decisão não vai sequer à raiz do problema: a degradação do sistema penitenciá­rio em seu conjunto. Ataca-se mais uma vez o sintoma e mantêm-se as causas da enfermidad­e.

O que temos aí? Um Estado em moratória moral, que, de costas para a sociedade que o provê, decide priorizar os que contra ela atuam. Um Estado inconstitu­cional, alheio aos fundamento­s com que é definido pela Carta Magna do país —e não apenas por atos pontuais, como esses, senão pelo conjunto da obra.

O que se deduz de tudo isso é que a reforma do Estado é a grande e inadiável urgência. Em seu perfil atual, não há planos econômicos, por mais engenhosos, que o regenerem. É preciso refundar o Estado brasileiro —ou será cada vez mais ingovernáv­el.

Indenizaçã­o a presidiári­o é dar as costas para a sociedade e priorizar os quem contra ela atuam

RONALDO CAIADO,

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