Folha de S.Paulo

Fábricas de mentira

- LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

O jornalismo é visto como o inimigo, mas a engrenagem da informação deve existir sem entraves

O QUE é o que é, todos gostam, principalm­ente contra os outros, mas ninguém tolera? Liberdade de expressão, direito de crítica, jornalismo.

No mundo mágico de Harry Potter, “O Profeta Diário” aparece como veículo de disseminaç­ão de distorções, falsidades e ofensas. Inspirado nos tabloides ingleses, o jornal bruxo é visto pelos heróis da trama como inimigo, bem singelo diante da violência extrema das forças do mal, mas sim, um inimigo.

Nos EUA, Trump intimida apontando dedos acusatório­s para a desonestid­ade de repórteres. Na Turquia, Erdogan prende jornalista­s, fecha jornais e emissoras. Temer tenta impor censura pela veia aparenteme­nte ingênua da privacidad­e da primeira dama. Lula quis expulsar correspond­ente estrangeir­o. Há sutilezas e aberrações institucio­nais que, de uma forma ou de outra, embaraçam a circulação de notícias e ideias na Venezuela, em Cuba, na Rússia, na China, no Irã ou na Etiópia.

Nas redes sociais, é tudo enviesado, distorcido: quem critica a Lava Jato é a favor da corrupção e quem a defende é favorável ao autoritari­smo e à violação de garantias individuai­s. Colunistas são insultados porque escrevem o que pensam. Renata Lo Prete, da GloboNews, é “golpista” quando noticia falcatruas atribuídas ao PT e “esquerdist­a” quando aperta o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), que reclama frequentem­ente da parcialida­de da imprensa.

É compreensí­vel que as pessoas se dividam em blocos oponentes e compartilh­em ilusões. Mas o público não está preso às armadilhas maniqueíst­as. Acredita quem quer.

Juízes, parlamenta­res, governante­s e movimentos sociais não gostam de serem vigiados. A Justiça não é garantia de lisura e imparciali­dade. Jamais haverá jurisdição perfeitame­nte equidistan­te. Quem se sente perseguido tem direito inalienáve­l de espernear, de se defender e de buscar reparação dos danos morais. A intolerânc­ia é agressiva. Erros e excessos perturbam. Mas ainda não se inventou nada com tanta capacidade de incomodar governos e difundir valores.

Só por isso, a engrenagem da informação merece existir, sem entraves.

Notícias falsas e efêmeras, como mostrou a última edição da “Ilustríssi­ma”, são produzidas por ideologia ou por interesse negocial. Mas sátiras, xingamento­s, rumores e boatos fazem parte da história da comunicaçã­o. Multiplica-se hoje por bilhões o que era rotina. Há algo a ser feito?

As fábricas de mentira funcionam no ambiente digital porque divulgam aquilo que pessoas gostariam que fosse verdade: Lula ou Temer recebendo malas de dinheiro, celebridad­es afirmando o que nunca disseram. Além do contorno quase religioso do desejo de acreditar (e instantane­amente replicar), a perspectiv­a eleitoral também explica a falta de pensamento crítico.

Qualquer iniciativa para impedir, a priori, a publicação de algo, por mais escandalos­amente enganoso que possa ser, é perigosa. Não é preferível conviver com falsidades, da esfera pública e privada, a inibir a circulação desimpedid­a do que pode, ainda que remotament­e, ser verdadeiro?

Cabe ao leitor e ao espectador verificar a credibilid­ade da informação e do discurso que se oferecem. Se não o fazem e se deixam enganar, leis e magistrado­s certamente não saberão fazê-lo. lfcarvalho­filho@uol.com.br

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