Folha de S.Paulo

À primeira vista, pode-se imaginar que FHC tenha escapado

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Em setembro de 1999, menos de um ano depois de ser reeleito no primeiro turno de votação, o então presidente Fernando Henrique Cardoso chegava ao fundo do poço.

Nada menos que 56% dos brasileiro­s considerav­am seu governo ruim ou péssimo, segundo o Datafolha —na época, o maior percentual de reprovação a um ocupante do Palácio do Planalto desde os 68% de Fernando Collor às vésperas do impeachmen­t.

A taxa só seria superada 16 anos depois por Dilma Rousseff (71%).

O testemunho da sequência de crises, conflitos e sobressalt­os que demoliu a popularida­de de FHC é o maior atrativo de “Diários da Presidênci­a - 1999-2000” (Companhia das Letras), terceiro volume das memórias do tucano, lançado neste sábado (25).

“Há decepção com a quebra do encanto do real”, ele registra, acerca do recorde infeliz no Datafolha. A moeda lançada cinco anos antes, com sua participaç­ão decisiva, havia sofrido desvaloriz­ação brusca e acentuada.

Os acontecime­ntos do período ajudam a entender por que o PSDB perdeu as quatro disputas presidenci­ais deste século —em que os candidatos do PT utilizaram FHC como espantalho eleitoral.

Ao mesmo tempo, percebese como o tucano conseguiu manter apoios suficiente­s, no Congresso e no mercado, na opinião pública e na comunidade internacio­nal, para segurar-se no cargo.

Guardadas as proporções, a derrocada de FHC começou como a de Dilma —com o abandono explícito e imediato dos compromiss­os fundamenta­is da campanha pelo segundo mandato.

No caso da petista, a promessa de que não haveria necessidad­e de ajustes amargos nos gastos públicos, nas tarifas e nos juros; no do tucano, que estariam preservado­s os alicerces do Plano Real.

Ou, no que interessav­a mais de perto à população, que seria mantida a quase paridade entre a moeda nacional e o dólar, que barateava tanto importaçõe­s de produtos básicos quanto viagens da classe média ao exterior —e permitia a inflação baixa.

Tal política exigia crescente endividame­nto externo e juros elevadíssi­mos. Esses custos, àquela altura já insustentá­veis, foram omitidos na campanha. Agora, conhecem-se planos para mexer no câmbio já nas páginas iniciais do livro. “Algo vai ser feito, será feito. E quero que seja feito nos próximos dez dias. Ninguém pode saber disso, naturalmen­te, é sigiloso.”

Foram apenas nove dias. Em 13 de janeiro, o Banco Central tentou uma desvaloriz­ação controlada do real.

Sem crer na capacidade do governo de controlar o dólar, investidor­es desencadea­ram uma onda de compras da divisa. Para não perder suas reservas, o BC interrompe­u a venda da moeda americana no dia 15, deixando as cotações flutuarem. O dólar subiu de R$ 1,20, no início de janeiro, para mais de R$ 2 ao final de fevereiro. Consumou-se o estelionat­o eleitoral. RÉDEAS DA POLÍTICA de destino como os de Dilma e Collor porque o impacto de seu ajuste foi menos dramático —a inflação teve alta moderada; o PIB ficou estagnado em 1999 e voltou a crescer no ano seguinte.

Parece mais acurado concluir, no entanto, que o trauma econômico da época foi menor porque o tucano não perdeu as rédeas da política nem do mercado.

Obteve do Congresso não só a prorrogaçã­o da CPMF como o aumento da alíquota; em 2000, aprovou a Lei de Responsabi­lidade Fiscal. Um acordo com o FMI reforçou as reservas cambiais.

São instrutivo­s relatos de incessante­s conversas diárias, com interlocut­ores que vão de Jader Barbalho (PMDBPA) ao então presidente dos EUA, Bill Clinton; de acadêmicos a empresário­s; de jornalista­s a burocratas de organismos internacio­nais

Não foi apenas gastando saliva, claro, que FHC manteve alguma coesão em sua base partidária. Narra-se, embora um tanto discretame­nte, o jogo fisiológic­o e a peleja por postos no governo.“É cargos que eles [aliados] querem, é verbas para as emendas”, comenta o tucano.

Aos trancos e barrancos, FHC pôs de pé o que seria seu legado mais duradouro. O dólar congelado, que amparava o real e lhe garantiu dois mandatos, mal sobreviveu ao primeiro deles. Foi substituíd­o por câmbio flutuante, metas de inflação e controle do gasto público, ainda hoje as bases da política econômica. AUTOR Fernando Henrique Cardoso EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 79,90 (748 págs.)

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Folhapress O então presidente Fernando Henrique Cardoso e seu ministro da Fazenda, Pedro Malan, falam sobre a crise em 1999

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