Folha de S.Paulo

Também no plano estético, uma crítica aos perigos de você representa­r o desenvolvi­mentismo

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Lá vem o trenzinho caipira da literatura brasileira apitando e soltando fuligem. De repente, desaba um pedregulho nos trilhos, quebra tudo.

É essa a metáfora que Silviano Santiago, um dos principais críticos literários do país, usa para falar do surgimento de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, nas letras nacionais, em 1956. O sertão rosiano é o objeto de seu novo livro, “Genealogia da Ferocidade”.

Em entrevista à Folha, Santiago diz que a crítica tentou “domesticar” “Grande Sertão” e não se deu conta da crítica que ele faz ao desenvolvi­mentismo do país. Que tipo de domesticaç­ão é essa que você aponta na crítica literária sobre o livro?

A crítica se viu diante do dilema complicado, porque é um livro de leitura áspera. A revista “Leitura” publicou um artigo que trazia entrevista­s com escritores que não tinham conseguido lê-lo [Ferreira Gullar disse: “O livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os linguistas”].

A crítica assumiu sua função tradiciona­l, de mediar a leitura para o leitor comum. O sr. atribui também a Antonio Candido tal domesticaç­ão.

Ele, o mestre de todos nós, teve a ideia extraordin­ária de comparar o livro a “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Essa comparação serve para dar um olhar histórico a um romance que, na verdade, não se apoia na história.

Imediatame­nte, o romance se transforma numa nova representa­ção dos problemas clássicos da República Velha, com os jagunços e coronéis. No entanto, você vê que no livro não há nenhuma data. Ele vai dando uma conotação um pouquinho perigosa, que é o conflito entre o progresso e a barbárie. Por que essa comparação não faria sentido?

A condição de enclave torna “Grande Sertão” uma alegoria da nação toda vez que ela passa por um movimento desenvolvi­mentista sem se preocupar com as questões humanas e sociais [O romance de Rosa sai no mesmo ano em que JK assume o poder].

Nascimento

Formiga (MG), 29.set.1936

Carreira

Formado em letras pela UFMG e doutor pela Sorbonne, foi professor da Universida­de do Novo México (EUA), da PUCRio e da UFF, entre outras. É autor de livros de ficção como ‘Machado’ (Companhia das Letras) e de crítica, como ‘O Cosmopolit­ismo do Pobre’ (UFMG)

A comparação com “Os Sertões” foi muito útil, mas ela foi escondendo o que é o livro. Vejo dois elementos: um é a ferocidade, que é responsáve­l pelo comportame­nto dos personagen­s dentro daquele enclave; outro, a irascibili­dade, que seria toda a tentativa de botar ordem nessa anarquia. Então, o livro é uma crítica ao desenvolvi­mentismo? pelos valores que ele faz circular naquele momento. Daí vem a insatisfaç­ão da maioria dos leitores.

O livro é publicado na mesma época em que a Bienal de Arte de São Paulo premia o abstracion­ismo geométrico. Depois, vêm João Cabral de Melo Neto, que usa 20 palavras para escrever [risos], e os concretos. Mais adiante, a bossa nova. Toda essa ideia de que menos é mais.

Todos adotam a linguagem racional do desenvolvi­mentismo. No fundo, participam literária e politicame­nte dele. Por que você diz que o uso que Guimarães Rosa faz da pontuação é aleatório?

Se você for seguir a pontuação racionalme­nte, você não sai da frase. Comparo com a pintura de Jackson Pollock, você vai distribuin­do [a pontuação] pela página. Guimarães Rosa ordenou a fala do jagunço da maneira que ela poderia ser ordenada, que é pelo acaso. AUTOR Silviano Santiago EDITORA Companhia Editora de Pernambuco QUANTO R$ 40 (117 págs.)

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